Dias atrás, ao encontrar um dileto amigo que não via há anos, tasquei a mais tradicional pergunta dessas ocasiões, o famoso “Como vai?” Re...

Último abraço

literatura paraibana cronica nostalgia saudade perdas
Dias atrás, ao encontrar um dileto amigo que não via há anos, tasquei a mais tradicional pergunta dessas ocasiões, o famoso “Como vai?” Recebi resposta não costumeira, digamos, surpreendente até.

— Escapando! — disse ele.

E não é assim? Vamos escapando. Escapando de doenças, assaltantes, balas perdidas e das não perdidas, crises econômicas, paixões mal resolvidas, acidentes. Enfim, listar aqui do que andamos escapando não caberia nesta coluna.
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Garrincha não driblava seus “joões” como nós driblamos os percalços dessa tal de vida. Começo achar que estou ficando craque em aplicar esses dribles. Por essas e por outras é que nós, os sobreviventes, vamos tendo que dar vivas ao prateado que chega como inquilino definitivo no cocuruto. Envelhecer é uma grande vitória, uma inegável conquista.

Essa sobrevida traz consigo os encantos da maturidade, enche um balaio de experiências, nos tornamos mais tolerantes e somos capazes de buscar encantos onde nos tempos de moço nem suspeitávamos que houvesse. Mas a longevidade, afora alguns de seus sortilégios, vem para nos punir com perdas, quase sempre dolorosas, daqueles entes queridos que não conseguiram ou não souberam escapar.

Claro, também que tive minhas perdas: grandes amigos, tios, avós, mãe, pai, irmão e até filhos. Dolorosas sempre. Quando se vão, ficamos nos cobrando de atitudes que acabamos devendo. Uma palavra que faltou, um gesto amigo que tínhamos deixado para depois, um pedido de desculpas, o perdão que não se concretizou, um beijo que não saiu de nossos lábios...

Esses pensamentos povoaram minhas horas no último fim de semana e deixaram-me enredado num cipoal de reflexões. Depois veio a preguiça oportuna capaz de nos afastar das tarefas prementes. Estação das chuvas por aqui. Tira-nos o ânimo de deixar a alcova.
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Busquei ora a leitura, ora essa engenhoca aqui para produzir alguns textos. Entusiasmo para sair, nenhum. Então, apareceu não sei de onde, uma súbita coragem de reorganizar algumas prateleiras da minha estante. Lá estava a velha caixa abarrotada de fotos antigas. Para quê? Por quê?

Nem sei o tempo que gastei tentando organizar o conteúdo daquela pequena arca, daquele acervo de saudades. Envelopei muita coisa de meu passado, muita gente. Nesses registros, já em cor de pátina, a inevitável marca dos tempos. Tentei uma organização temática: infância, escolas por onde estudei, Tiro de Guerra, faculdades, namoradas (por que não?) , amigos de infância, dois casamentos, os filhos, tempos na chácara em Bauru, a longa trajetória de professor, viagens... tanta coisa. Não consegui. Os conteúdos se misturaram nos envelopes junto com as recordações que brotavam daquelas imagens.

Como são importantes e ao mesmo tempo cruéis esses registros de nossas vidas. A abertura desses baús nos remete a doces e ternos alvitres, mas são implacáveis nas cobranças. Cobranças? Sim, cobranças. Cobram de nós aquele gesto que ficamos devendo a alguns daqueles que estão ali só em fotografias e não escaparam. Promissória que não dá para resgatar: o abraço contundente, significativo, aquele, exatamente aquele, o último abraço que não fomos capazes de dar.

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