A primeira manifestação literária de que temos notícia no mundo ocidental diz respeito à epopeia homérica, Ilíada , poema de tradição oral...

Relação entre psicanálise, literatura e mito

A primeira manifestação literária de que temos notícia no mundo ocidental diz respeito à epopeia homérica, Ilíada, poema de tradição oral, do século VIII a. C., composto em versos hexâmetros e estabelecido como texto escrito no século VI a. C., por Pisístrato, tirano de Atenas. A despeito de não ser pensado ainda como literatura, haja vista que a primeira referência a essa categoria é feita por Aristóteles, na Poética (ἀνώνυμος, 1447b9), apenas no século IV a. C., sendo ele o precursor da futura teoria literária, a Ilíada tem a mimese como seu instrumento de composição, haja vista ser as ocorrências humanas, especificamente do período arcaico grego, o material para a criação do enredo, falando de um mundo guerreiro, em que o valor heroico é o pressuposto.

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Nesse sentido, desde o início, tem-se no material humano o escopo para a literatura, a saber, as alegrias, as angústias, as tristezas, as conquistas, os fracassos, os conflitos existenciais, etc., fornecendo-nos, desse modo, campo profícuo para estudos no âmbito das ciências humanas. E foi nessa perspectiva que Freud, intrigado com a comoção que a obra artística, especificamente a escultura e a literatura, suscita naquele que a aprecia, procurou investigar os meandros psíquicos do processo da criação artística.

Assim, afirma o pai da psicanálise, em seu texto “Moisés, de Michelangelo”, de 1914 (Do livro Arte, literatura e os artistas, tradução de Ernani Chaves, da Editora Autêntica, 2017):

Sei que não se trata de uma apreensão meramente intelectual; trata-se do estado dos afetos, da constelação psíquica, que devem levar, no artista, a força pulsional até a criação. Mas por que a intenção do artista não pode ser transmissível e ser compreendida em uma palavra, como qualquer outra atividade da vida anímica? Talvez porque, nas grandes obras de arte, isso não seja alcançado sem a utilização da análise (p. 184).

Na intenção do artista de compor uma obra, há, no âmbito da criação, elementos que concernem à técnica empreendida própria do artista, há a matéria da qual trata a obra, mas há também o âmbito do inconsciente, em que a subjetividade daquele que cria, atua intrinsecamente no fazer artístico. Remetendo especificamente à literatura, um mesmo texto pode suscitar várias leituras, haja vista que o subsídio a que recorre é o material humano, e dentro da complexidade que é o humano, possibilita perspectivas várias, submetidas, no entanto, ao limite estabelecido pela criação literária concernente ao texto.

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A interpretação é instrumento tanto da Psicanálise quanto da Literatura. A primeira interpreta as representações do inconsciente dentro da dinâmica psíquica, a segunda tem como objeto o texto, que possibilita a interpretação das representações contextuais advindas do subsídio humano utilizado como matéria da mimese e da poiesis. Ambas são formas de pensar a condição humana, e a palavra está no cerne desse processo, é o meio precípuo para que isso aconteça. Com o mito não é diferente. Etimologicamente, mito significa narrativa, visto que advém do verbo μυθέομαι, cujo sentido é narrar, e sua função é tentar explicar a condição humana, através de uma ordenação.

O mito em relação à Psicanálise aparece como fonte inesgotável, instrumento que colabora para a explicação conceitual de certos aspectos dessa condição, tendo em vista que uma das funções sociais do mito era ajudar o homem a entender seu contexto, endógeno e exógeno, o mundo no qual estava inserido, com seus conflitos e aporias. Logo, a função primeira do mito é elaborativa. Em seu caráter funcional, ele transcende o limite do tempo histórico e cronológico, uma vez que serve como instrumento de estruturação psíquica para o homem, no processo de compreensão do mundo que o circunda e do qual participa. Trata-se de narrativas criadas, em princípio, para explicar a origem daquilo que existe, a saber, o céu, a terra, os homens, os deuses, os animais, o amor, o ódio, a morte, a vida, os acontecimentos, as emoções que assolam o homem, etc., logo, o seu arcabouço é o material humano.

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Assim sendo, é possível abordar o mito através de vieses diversos, seja da cultura, da religião, da antropologia, da arqueologia, da história, da psicanálise ou da literatura, uma vez que o ser humano está no cerne do campo de estudo desses vários âmbitos do conhecimento.

K. K. Ruthven, na introdução do seu livro O mito, pergunta o que é mito? Segue a resposta (Tradução de Esther Eva Horivitz, Perspectiva Editora, 2010):

Na realidade, a própria pergunta está errada, porque não temos experiência direta do mito em si, mas somente de determinados mitos: e estes – como veremos – têm origem obscura, forma protéica e significado ambíguo. Aparentemente, são imunes à explicação racional, mas estimulam as pesquisas racionais; existe uma grande diversidade de interpretações contraditórias, e nenhuma delas possui o alcance suficiente para explicar definitivamente o que é mito (p.13).

A tradição greco-latina, cuja herança formou a cultura ocidental, abrange um extenso período, pelo menos do século XVI a.C. ao V d.C., se considerarmos a civilização grega e a romana. O mito faz parte da construção cultural de ambas e assumiu diferentes matizes durante esse extenso período, assim, torna-se difícil, até mesmo inexequível, elaborar um conceito único para mito. E talvez por isso mesmo seja ele tão funcional, uma vez que vem ajudar a explicar certos fenômenos sobre os quais, a princípio, não se tinha resposta.

Além disso, o mito tem sua lógica interna, pois vem dar uma explicação a respeito de algo que é real, como por exemplo, como surgiu uma flor chamada narciso, ou mesmo como foi criado o cosmos.
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O Big Bang, teoria proposta por Lemaître no início do século XX, que traz uma explicação cosmológica acerca da expansão do universo, já havia o seu assunto sido demonstrado por Ovídio, no século I a.C., em suas Metamorfoses, através da narrativa de um mito cosmogônico, do qual a própria Pangeia, teoria sugerida no século XVI por Abraham Ortelius, faz parte. O mito, portanto, tem uma estrutura arquetípica, busca remontar a ἀρχή, à origem, de onde tudo surgiu. O mito é ordenador, como nos mostra a narrativa de Prometeu, na peça Prometeu acorrentado, de Ésquilo, versos 436-506 (Tradução de JAA Torrano, Perspectiva Editora, 2009), que conferiu aos homens a civilização, entregando-lhes o fogo e ensinando-lhes todas as técnicas, para plantar, colher, construir, etc., tratando-se de um mito civilizatório. Logo, assim como Proteu, o mito se metamorfoseia, adequando-se à finalidade para a qual foi elaborado.

No que tange à função do mito como instrumento da psicanálise, afirma Antonio Alberto Semi, em seu livro O narcisismo, necessário quando é sadio, ofuscante quando apaga os outros (Tradução de Silva Debetto C. Reis, Edições Loyola, 2011)

Do ponto de vista psicanalítico, justamente esta é uma das funções do mito: permitir representar conscientemente, projetando-o sobre um mundo exterior, um conteúdo psíquico que de outra forma não poderia ser aceito pela consciência (p. 33).

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Quanto à origem do mito, a despeito de ‘não termos a experiência direta do mito em si’, como afirma Ruthven (2010, p.13), é possível, graças aos achados arqueológicos e aos textos que chegaram até nossa época, ter uma leve compreensão da sua estrutura. Nesses primórdios, não há como dissociar o mito do seu caráter transcendente e ritualístico. O rito atualiza o mito, sempre que este é trazido de volta nas cerimônias, e ao ser narrado, rememora o fato, aquilo que aconteceu in illo tempore. Com o alvorecer da Filosofia, no século VI a.C., o mito paulatinamente se dessacraliza, passando a assumir um caráter alegórico, e, posteriormente, representativo, como elemento estético na arte e na literatura. Mas, mesmo com esses usos, mantém sua disposição funcional de explicar, de maneira simbólica, fenômenos que o pensamento positivista não consegue abarcar. E é desse modo que o mito é trazido pela Psicanálise, ele é instrumento simbólico, cuja função é promover uma ordenação que explique o funcionamento psíquico do homem.

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  1. Maravilha de texto, cujo ponto alto, parece-me, está neste trecho:
    - "Com o alvorecer da Filosofia, no século VI a.C., o mito paulatinamente se dessacraliza, passando a assumir um caráter alegórico, e, posteriormente, representativo, como elemento estético na arte e na literatura."
    Curiosamente, fui a Homero depois de consumir uma Bíblia em 16 volumes, nos anos 60, levado pela influência de meu pai, muito católico, que lia e relia o que chamava de "Livro Sagrado" e repassava isso aos filhos, fascinando-nos com a maneira simples com que nos contava passagens aventurescas do Velho e do Novo Testamento, centradas em Sansão, Daniel, Davi, Moisés, Jesus. A coleção - católica como seu Fortunato Solha - cheia de informações de rodapé, me "armou" para ir à "Ilíada" e "Odisseia". Daí a importância que dei ao trecho citado, de Alcione Albertim. Porque me ficou claro que, realmente, a Filosofia dessacralizou o mito... grego. E o grande equivoco que anoto, no resto da humanidade, é que não generalizou a lucidez de Atenas.

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