Na lâmina que divide o dia da noite repousa o equilíbrio diário. É a cena que volta a se repetir quando a penumbra, horas depois, se aquec...

Lâmina diária

van gogh paisagem noturna
Na lâmina que divide o dia da noite repousa o equilíbrio diário. É a cena que volta a se repetir quando a penumbra, horas depois, se aquece e aclara. É um fio por onde se aprumam todos os passamentos, pensamentos, onde se ajustam corpos humanos e celestes. Vida, morte. É o recorte perfeito, o fio do corte instantâneo em tons alaranjados/vermelhos ou azuis/negros que pipocam efeitos pirotécnicos na direção do oeste, para horas depois ressugir do leste.

E as lentes por mais que tentem são incapazes de captar tal perfeição que o olho único pisca em incredulidade. Mais um ato de amor entre céus e terras
van gogh paisagem noturna
Noite Estrelada sobre o Rio RódanoVincent Van Gogh ▪ 1888
e horizontes. Pincelado por piscantes celestiais seres que começam a se apresentar ou displicentemente se arretiram. Composição perfeita.

Uma fração de segundo é a duração do momento do justo equilibrista dia, enigmático tempo curto e eterno. Por vezes, ruidoso, outras tantas quase um monastério de silêncio e paz. Irracional e pragmático, tempestuoso e calmaria de ventos. A junção e disjunção dia/noite é a materialização aos olhos do tempo. Uma forma disforme de existir.

Sempre único é navegar o dia, por mais que pareça repetitivo. Pobre ser homem incompetente para perceber o ineditismo de cada segundo de sua passagem chamada de vida. É um marinheiro sempre novato na embarcação a se confundir com nós, vagas, aves e ilhas. Náufrago contínuo mesmo embarcado, poeta sem consciência das gramaticais construções que erige. Tijolo a tijolo, só enxerga aquela junção, sem elucidar o todo. Ser mareado pelo balançar do existir.

E o dia passa, mesmo sendo noite. A lâmina faz a imperceptível incisão e parte. Quando retornar terá mudado. O olhar tenta capturar e revelar a força do instante. Ficará a eternidade de sua presença, fixo, semelhante a um belo Van Gogh, um Monet, que a cada olhadela revela um detalhe, um significado. E, sem nunca se repetir, avança pelas trincheiras do novo pequeno renascimento.

van gogh paisagem noturna
Paisagem ao EntardecerVincent Van Gogh ▪ 1890
Do novo instante, um “desdia”, uma “desnoite”, recuo aparente, mas inexistente do que já ocorreu do giratório relógio, 24 horas antes. É uma nova passagem. Hora de suspender a vista, embarcar, colidir com a própria rotação de ser. E saber que ali teve a face beijada pela brisa enviada para acariciar a contemplação. Entardecer, amanhecer. É a pausa do silêncio  do exato instante entre duas batidas do coração. Talvez melhor definição de paz.  

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  1. Muito bom e muito bonito. Sempre me fascinou, o sono. Que é quando, ao que me parece, livre de nossa intervenção, algo diz algo muito importante para algo, em nós.

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    1. A noite, o sono, a madrugada, a penumbra, sempre com seus mistérios falam coisas especiais. Precisamos saber ouvir. Que bom que gostou do texto, caro Solha.

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