A quinta parte de Os Miseráveis se chama “Jean Valjean”. O primeiro livro, “La guerre entre quatre murs” (“A guerra entre quatro muros”), ...

Dos esgotos para a vida

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A quinta parte de Os Miseráveis se chama “Jean Valjean”. O primeiro livro, “La guerre entre quatre murs” (“A guerra entre quatro muros”), é composto de 24 capítulos, abordando a guerra travada a partir da barricada da rua de Chavrerie, na aurora do dia 6 de junho de 1832, numa tentativa de levante contra o rei Philippe-Louis. O segundo livro, composto de seis capítulos, se chama apropriadamente “L’intestin de Léviathan” (“O intestino de Leviatã”), aborda apenas o discurso sobre os esgotos de Paris, seguindo o roteiro estabelecido por Victor Hugo de fazer uma dissertação pormenorizada sobre
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Jean Valjean carrega Marius nos subterrâneos de Paris ▪ ilustração de Emile Bayard para Os Miseráveis ▪ ed. Hugues, 1879
um assunto que será de grande importância para aquele momento na narrativa.

Jean Valjean, atacada a barricada pelas forças monárquicas, foge pelos esgotos, levando consigo Marius ferido na cabeça e no ombro. Antes de sabermos aonde vai chegar a sua iniciativa, Victor Hugo nos faz conhecer o íntimo dessa besta, desde quando ela existe, o mal e a saúde que dali podem sair, a miséria e a riqueza que o Leviatã guarda. Em suma, o escritor nos diz que se todas as cidades soubessem tratar os seus esgotos, o ganho para a população seria maior do que o dinheiro ali gasto. É o momento em que a administração pública deveria distinguir entre o que é despesa e o que é investimento: o tratamento dos esgotos é investimento dos mais compensadores para um estado e a sua população.

Existe uma Paris sob Paris, é a Paris dos esgotos (“Paris a sous lui un autre Paris; un Paris d’égouts”. Parte V, Livro II, Capítulo I – “La terre appauvrie par la mer” ). Ao mesmo tempo que os esgotos são leitos de podridão e monstruoso berço da morte, eles também são asilo, são a consciência da cidade, cuja história passa por eles (Capítulo II – L’histoire ancienne de l’égout”). Este báratro, estas regiões leprosas, teve o seu explorador: “Le cloaque eut son Christophe Colomb” (“A cloaca teve o seu Cristóvão Colombo”. Capítulo III – “Bruneseau”). Ele se chamava Bruneseau e, a partir de 1805, começou, sob os auspícios do imperador Napoleão Bonaparte, a realizar o trabalho de desvendar o Dédalo e a pôr ordem no caos, assim como todo o penoso trabalho de saneamento de seus canais. No curso desses trabalhos, descobriram-se coisas bizarras como um orangotango, que sumira do pequeno zoológico do Jardim das Plantas,
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Jean Valjean e Marius ▪ ilustração de Fortuné Méaulle ▪ ed. Hugues, 1879
e um pedaço da mortalha de linho com que fora coberto o revolucionário Jacobino Jean-Paul Marat, assassinado em sua banheira por Charlotte Corday, simpatizante dos Girondinos, em 1793.

Antes, ainda de falar dos esgotos de 1832, por onde se enfiou Jean Valjean, Hugo nos fala do esgoto de sua época, no caso, o ano 1861, quando estava prestes a terminar Os Miseráveis. Já na sua época, os esgotos eram limpos e a lama se comportava decentemente (“La fange s’y comporte décemment”. Capítulo V – “Progrès actuel”). A metáfora que melhor define os esgotos de sua época é a que os compara a um fornecedor que se tornou conselheiro do estado (“Il ressemble à un fournisseur devenu conseiller d’état”. Capítulo V – idem). Por outro lado, Bruneseau se compara a Hércules, no episódio mítico da limpeza das cavalarias de Áugias, um dos doze trabalhos do herói. Se em 1832, época da ação de Jean Valjean, Paris conta com 11 léguas de esgotos, na época de finalização do romance, em 1861, já são 66 léguas, todas limpas e saneadas, “entranhas enormes de Paris. Ramificação obscura sempre em obras; construção ignorada e imensa” (Capítulo VI – “Progrès futur”). Muitos morreram nesse trabalho, mas como diz Hugo, sempre atual:

“Não há boletim para estes atos de bravura, mais úteis, no entanto, do que a matança bestial nos campos de batalha”
— Capítulo VI – idem —

É para se ficar pasmado quando se sabe que já não há esgoto a céu aberto, em Paris, desde 1823! Uma epidemia de cólera ajudou na tomada de decisão para apressar o saneamento dos esgotos. O gasto de 48 milhões de francos, à época, representou para toda a sociedade, diz Hugo, “diminuição da miséria e aumento da saúde” (Capítulo VI – idem).

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Visitantes conhecem os esgotos de Paris, em passeio de barco ▪ ilustração original do periódico London News ▪ 1870
Que grande lição! Se compararmos com a nossa república e seus gastos astronômicos, com mordomias, financiamentos de campanha e outras coisas nada republicanas, que não quero dizer por óbvias que são, a França gastou um troco e teve um imenso retorno. Perdulários, nós desperdiçamos fortunas, enfiando-as no ralo das mordomias estatais e da corrupção. Se os esgotos de Paris, de tão retos e limpos, pareciam um fornecedor que se tornara conselheiro do estado, os nossos conselheiros de estado estão cada vez mais parecidos com os esgotos, “esse vício que a cidade tem no sangue” (“le vice que la ville a dans le sang”. Capítulo VI – idem).

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  1. Genial! Interessante: não me lembrei dOs Miseráveis ao me chegar ao rio Sena, mas ao ouvir um guia de turistas, quando passeava no Tâmisa. Wikipédia: "Dos tempos do Grande Fedor – como o Tâmisa ficou conhecido também como rio fedorento em 1858, quando as sessões do Parlamento do Reino Unido foram suspensas por causa do mau cheiro — até hoje, foram quase 120 anos de investimento na despoluição das águas do rio que cruza a cidade de Londres. Milhares de milhões de libras mais tarde, remadores, velejadores e até pescadores voltaram a usar o Tâmisa, que hoje conta com 121 espécies de peixes." E me impressionaram as comportas que controlam as marés para evitar . inundações em Londres. Parece que aprendemos, desses povos, apenas o que fizeram Dior e os Beatles e perdemos o essencial.

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  2. Muito merecedor de uma leitura atenta e com lente de alta calibre!!
    Lerei quando chegar em casa!!!
    Paulo Roberto Rocha

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