— Ai, Enfermeira, com os mil e seiscentos diabos... — Calma, meu senhor. Foram arranhões profundos. Temos que remover esses cascões. ...

O amigo Einstein

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— Ai, Enfermeira, com os mil e seiscentos diabos...

— Calma, meu senhor. Foram arranhões profundos. Temos que remover esses cascões. Há inflamação debaixo deles. Está tudo purulento. Você devia ter cuidado disso logo depois do ataque.

— Ai, minha Nossa Senhora... Cuidei, moça. Lavei com vinagre.

— Vinagre é tempero, meu querido. Tomou vacina antirrábica?

— Tomei não. Mas quanto a isso estou tranquilo. Não está hidrófobo. Com cinco dentro de casa aquele desgraçado só parte para cima de mim.

E, entre gemidos e imprecações, a conversa prosseguiu. O bicho apareceu-lhe na garagem, ainda muito novinho, numa manhã de chuva, mais morto do que vivo. Pensou em atirá-lo de volta à rua, mas o impediram de fazer isso a mulher e os filhos. Uma caixa de sapatos com panos quentes e leite a conta-gotas salvaram a vida do infeliz que logo cresceu e se transformou no xodó da família.

Logo notou que ele não aceitava de bom grado suas poucas tentativas de carinho. Refugava, fugia quando lhe passava a mão e, caso insistisse, lá vinha o chiado de cobra, aviso claro de que deveria se afastar. Se fizesse pouco caso, tomava patada dolorosa e rápida como o raio. Ao contrário disso, o desalmado se aquietava, ronronava e aceitava a aproximação da dona da casa e dos meninos, três anjos pequeninos, inocentes e puros.

Será que bicho também percebe rejeições, cultiva ressentimentos? Teria guardado na mente a pequena discussão familiar estabelecida no momento da sua aparição, molhado e trêmulo, debaixo do carro? Ou os ataques a cada uma de suas aproximações resultariam do pisão no rabo que lhe aplicara, sem querer, numa madrugada escura?

Ar de inteligente até que tinha. Tanto que isso lhe rendeu o nome de Einstein. Parecia o gato siamês da história de Millôr. A que envolvia uma dama gentil (e senil) apaixonadíssima pelo animalzinho por ela criado com a atenção e o desvelo que jamais dedicaria a qualquer espécime da raça humana. Bicho de boa cepa, pertencente a uma casta desenvolvida por deuses egípcios. Gato de olhar profundo e mente brilhante. Só faltava falar, mas isso até o momento em que se viu obrigado, para não morrer de fome, a comer o ensopado de papagaio que a dona para ele preparara com o
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propósito de lhe desobstruir a garganta e a língua. Falou e avisou: “Corre madame que o prédio vai cair”. E ela: “Ai, meu Deus, milagre... Meu gatinho está a falar”. E ele: “Corre, corre”. Como sua dona, perplexa e maravilhada, não o escutava, tratou de escapar sozinho pela janela enquanto tudo ali desabava. “Que cretina... Passou a vida toda tentando me fazer falar e quando falei não acreditou em mim”, observava, com um misto de raiva e pesar, em meio à nuvem de poeira, o gato em questão.

Millôr, porém, fantasiava, compunha um daqueles textos preparados para o Pif-Paf, coluna cativa da finada revista O CRUZEIRO, sob o pseudônimo de Emmanuel Vão Gogo. Inventava história e a moral da história: “O mal do artista é não acreditar na própria criação”, seria sua lição sobre a madame e o gato siamês.

O seu, não, era gato real, bruto, rancoroso, vil, canalha. “Calma, moço. Tadinho do bichano. Tem foto dele?”. O que tinha era o braço em petição de miséria a comprovar o acerto do mau juízo que quase sempre fazia do bicho que lhe adveio do quinto dos infernos.

Que ninguém da casa soubesse, mas andava a pensar muito em se livrar daquele traste. Faria a coisa de modo a que ninguém dele suspeitasse. O mais confidente dos amigos, colega de repartição, jogaria no seu jardim a gata no cio, já no rumo da terceira barriga. Com o namoro engrenado, daria sumiço a ambos. Anoiteceriam e não amanheceriam. Seria como se um deles houvesse puxado o outro por esse mundão de Deus. De resto, prestaria um grande obséquio ao colega insatisfeito, igualmente, com o que tinha no santo recesso do lar.

Assim pensava, mas não levava o plano adiante. É que descobrira certas vantagens na convivência ruim com Einstein. A cada arranhão, as crianças, compadecidas, atendiam a seus pedidos por água e chinela. E, sem reclamação, já levavam de volta para os lugares devidos os sapatos e copos largados na sala.
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A patroa não lhe negava o prato preferido, o futebol com os amigos nem cafunés, cabeça no colo, nos horários da novela.

— Gato filho da égua, cachorro imundo, cretino. Ai, como isso arde...

— Calma, meu amigo, está terminando.

Teve, naquela noite, a mulher muito mais solícita e paciente. Tomou uma bela canja no sofá por recusar a mesa, procedimento que ela detestava. Sequer ouviu o costumeiro “deixe de ser manhoso”. Foi paparicado pelas crianças que lhe retiraram as meias. A menorzinha penteou-lhe os cabelos e reproduziu um trecho da cantiga de ninar que dele habitualmente escutava. Estava no Paraíso.

Esqueceu de levar a pomada e o antibiótico, mas teve isso na mesinha de cabeceira. Também se deitou, sem problema, no lado direito da cama, o espaço dela. “Ainda dói muito?”, ouviu de uma voz sumidinha, melosa, fora do tom e da rotina. “Dói, siiim”, respondeu, também, com voz dengosa e comprida. Entre o sopro e o beijinho oferecidos quis os dois, um no nariz e outro no esparadrapo.

Pouquíssimo tempo depois, pouquíssimo mesmo, uma pancadinha acidental, coisinha de nada, no braço ferido o fez virar de lado com a rapidez de uma daquelas patadas. Resultado: bateu na mesinha que então balançou a ponto da queda do copo com água, bem ao estilo e ao costume do gato doméstico.

— Mãe, põe Einstein no quintal. Acaba com esse barulho e esses miados. Quero dormir – gritou do quarto ao lado Juninho, o primogênito. Moral dessa história: À noite, todas as culpas são do gato.

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  1. Baixou o espírito de Vão Gogo!
    Quem inventou de criar gato malandro, como o são quase todos, que gem como certos humanos.

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    1. frutuosochaves@gmail.com10/6/22 09:35

      - Isso mesmo, Arael. Minha homenagem ao Millôr Fernandes, citado, com todas as letras, no presente texto.

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  2. Maravilhoso

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  3. Sobre gatos, tenho o mesmo pensamento do Sr. da crônica
    Adorei

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  4. Que crônica gostosa de ler. Ecos do jornalismo impresso. Sinto até o cheiro do jornal novinho, cheirando a tinta.

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    1. frutuosochaves@gmail.com10/8/22 19:55

      Obrigado, amigo.

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