Este texto é dedicado ao meu amigo Martinho Leal Campos, leitor e fã de Nélida
Chamo-a apenas pelo primeiro nome como se com ela tivesse tido alguma intimidade. Mas quem sou eu para tanto? Apenas um leitor. Todavia, sabemos, o leitor tem direito a tais atrevimentos com relação aos autores, sejam eles amados ou não. Ao lê-los e portanto trazê-los para o mais íntimo de nós, tornamo-nos amigos – ou ao menos conhecidos, justificando-se, assim, a quebra de maiores cerimônias e formalidades. Então, que seja Nélida, apenas Nélida, a grande escritora que nos deixou há poucos dias em Lisboa, na Península Ibérica tão amada por ela, tão próxima da Galícia de suas origens orgulhosamente cultivadas. Nélida, estranho nome, que ela descobriu, para mais amá-lo, ser um anagrama do nome de seu querido avô, Daniel.
Quem me deu a inesperada notícia foi Chico Viana, num telefonema cujo objeto era outro, completamente oposto, cheio de vida, descobertas e projetos. Fiquei atônito. Já era noite, mas ainda não tinha visto o jornal na TV, que ando evitando ultimamente, como uma forma de preservar a sanidade. Entretanto, sua morte já corria mundo nas telas das televisões e dos celulares. Era um fato – e eu não sabia.
Como uma maneira de homenageá-la, busquei na estante o seu Livro das Horas (Editora Record, Rio de Janeiro, 2012). Não é um romance nem são contos. São pequenos textos memorialísticos, rápidas reflexões sobre temas vários, alguns perfis e depoimentos sobre escritores amigos seus, lugares, enfim, fragmentos de suas experiências, de seu pensamento e de sua sensibilidade de escritora então com 75 anos, plenamente reconhecida, com uma vida praticamente vivida e realizada. Para quem ainda não adentrou sua obra propriamente ficcional, é um bom começo esse pequeno livro, que recomendo, por sua leveza e aparente simplicidade.
Busquei também o belíssimo volume Tenho apetite de almas – Uma fotobiografia de Nélida Piñon, de sua grande amiga Bethy Lagardère (Editora Arteensaio, Rio de Janeiro, 2013). Este é um verdadeiro deleite, uma jóia editorial, pleno de fotos e de informações biográficas sobre a escritora recentemente falecida. Nele está narrada e documentada a trajetória humana e literária da brasileira/galega que tanto honrou nossa gente e nossas letras. Para quem gosta do gênero, essas obras de caráter extremamente pessoal são tesouros, permanentemente visitados e que nunca se esgotam. Nélida menina, Nélida mocinha, Nélida mulher. A família, os amigos, as viagens, os prêmios, a Academia Brasileira de Letras, de que foi presidente no centenário da instituição, tudo está ali, à disposição do olhar ávido do leitor/admirador. O caminho longo e fértil de uma grande mulher.
Do Livro das Horas, destaquei, para este texto e seu eventual leitor, algumas frases de Nélida, que me tocaram pessoalmente, em meio a tantas outras, por seu significado revelador do coração e da mente da autora. Logo no primeiro fragmento, depois de começar afirmando “Não sou forte nem poderosa”, ela admite: “Não vivi sem resultados, minha vida não foi inóspita”. Ah, Nélida, você foi, sim, forte e poderosa, e seu poder veio certamente, pelo menos em parte, de sua força, marca inafastável de sua personalidade simultaneamente doce e afirmativa. E sua rica vida produziu muitos resultados, a sua valiosa obra literária, por exemplo, e foi muito hospitaleira, no sentido de ser aberta aos outros, seus semelhantes. E acrescentou, noutra passagem, a respeito de uma ida à feira: “Tenho razões de amar a vida diária, de sorrir por conta da minha banalidade”. Aí temos a mulher comum, dona de casa, despida de todos os títulos importantes, uma simples cidadã no prosaico ato de comprar frutas e legumes para abastecer a geladeira.
Mais adiante, outra confissão da maturidade: “A cada dia aprendo a amar. A família, os amigos, a língua, as instâncias da vida e da arte. Tudo que ausculto e responde ao chamado. O que arfa, respira e acolhe-me sem eu haver pedido”. Aí ela naturalmente incluiu Gravetinho, seu cãozinho querido, companheiro de suas solidões.
Em Nova York, cidade de muitas visitas suas, um dia escreveu: “Na rua, vítima do frio, aspiro que minha derradeira expressão de vida seja prazerosa para quem me escute à beira do leito”. Como desejo que, de algum modo, tenha sido realmente assim em sua despedida. Que alguém amigo possa ter colhido dela e possa ter lhe dado afeto diante da cama derradeira, aquela que os deuses acharam por bem reservar-lhe em Lisboa, por algum desígnio que não podemos alcançar em sua plenitude.
Sobre ela, Bethy Lagardère testemunhou, quando adentrou seus ricos arquivos domésticos, a colher material para a fotobiografia referida: “E, ao examinar a vastidão de seu acervo, até hoje não consigo entender como Nélida conseguiu operar o milagre de fazer caber tudo em seu dia e em uma só vida. É um mistério. Ela contraria o tempo, a matemática, e as leis da física. Tudo ao mesmo tempo. Além de ser, para todos nós, a grande escritora e o raro ser humano com que contamos em nossas vidas”. Palavras belas e confiáveis de quem muito conviveu com a romancista, que, a propósito, dormia pouco, como se quisesse estender as horas do dia para poder viver e produzir mais.
Nenhuma mulher foi mais feminista que ela (“Coexistem em mim, contudo, todas as mulheres do mundo. Cada qual apresentando indícios que pleiteiam reconhecimento, igualdade de condições”). Mas sem se rotular como tal, sem histerismos nem fobia pelo masculino. Soube sê-lo com atitudes, com trabalho sério, com uma obra feita e não apenas com discursos raivosos. Nunca abriu mão da feminilidade, com sua cultivada elegância no vestir, no falar e no agir. Também atuou politicamente, no mais alto sentido, lutando contra o arbítrio e a censura, quando era muito perigoso fazê-lo. E novamente, sem prejuízo da firmeza, como uma dama. Filha única, não deixou descendentes nem parentes próximos. Seus filhos, dizia, eram seus leitores; sua família, seus amigos escolhidos. Sem falar, é claro, nos seus cães, amores que nunca a decepcionaram.
Foi surpreendida pela “indesejada das gentes” quando se preparava para retornar ao Brasil. Mas estava preparada para esse encontro inevitável. Há dez anos escrevera, com a tranquilidade dos que têm a missão cumprida: “Desfaço aos poucos as ilusões com que afago o ego e deixo aberta a porta da casa a fim de facilitar o ingresso da dama com foice na mão. Ela virá como a amiga há muito esperada. Ao vê-la, espero entender a razão de sua presença, sem precisar me dizer que meu tempo esgotou, prepare-me para as despedidas”. Espero que assim tenha sido.
Os críticos e outros mais preparados certamente muito escreverão sobre o seu legado, que é grande. A variada obra agora está completa, o círculo fechado. Os estudiosos haverão de garantir a posteridade que ela conquistou e merece. Na ABL, assim como ocorreu com Rachel de Queiroz e Lygia Fagundes Teles, deixará um vácuo difícil de preencher na mesma altitude.
Brasil, Portugal e Espanha, todo o mundo lusófono e hispânico, se unem nesta hora para lamentar a sua perda. E os seus livros ficarão, monumentos perenes, em inúmeras línguas, para provar que sua vida valeu a pena e foi imensa, Nélida, Nélida Piñon.