Mesmo em criança, sempre tive um pé atrás em relação às canções de ninar e às cantigas de roda. Não que eu não gostasse delas, mas é q...

Do limão, quero um pedaço

cantiga ninar brincadeira roda infancia
Mesmo em criança, sempre tive um pé atrás em relação às canções de ninar e às cantigas de roda. Não que eu não gostasse delas, mas é que eu prestava muita atenção nos textos e no que poderiam significar, principalmente nas entrelinhas e nos silenciamentos. Também não quero aqui desmerecer, depreciar algo que está no imaginário de todos e que nos remota a lugares especiais e de nossos melhores afetos. Quero, apenas, refletir sobre esses discursos, que foram sendo cristalizados, ao longo do tempo, e dos quais lembramos sempre.

Falo aqui baseando-me apenas em senso comum. Não sou especialista no assunto e pouca leitura tenho sobre isso. Minhas considerações são mais impressões emocionais de quando, na infância, essa musicalidade chegava até mim.

cantiga ninar brincadeira roda infancia
Elf Moondance
Muitas canções de ninar, por exemplo, entoadas no suposto intuito de acalantar crianças na hora de dormir, eram, a bem da verdade, estratégias para intimidar, amedrontar e fazer pressão, e não propriamente com o objetivo de estimular relaxamento e provocar sono suave e reparador.

A pior, e a melhor, de todas (vá lá entender esse conflito), com a qual fui muitas vezes embalada numa rede, dizia mais ou menos assim: “Xô, xô, pavão! Sai de cima do telhado e deixa a menina dormir o seu soninho sossegado”. Não tinha como adormecer sabendo que havia um bicho em cima da casa, à espreita, para me pegar.

Em outra estrofe, essa mesma canção dizia: “Essa menina não é minha, foi que me deram para eu criar. A obrigação de quem cria é dar de comer e balançar”. Eu ficava pensando que havia sido “enjeitada”, como meus irmãos de vez em quando insinuavam, dizendo que uma mulher chamada Marluce havia me deixado na porta da nossa casa. Eles argumentavam: “Você tem olhos claros, e ninguém aqui tem olho claro”. Sem contar que só receber comida e ser ninada até ficar tonta e deixar de dar trabalho era muito pouco em comparação ao que eu esperava de quem cuidava de mim. Carinho? Abraços e beijos? Isso eu nem sabia que existia.

cantiga ninar brincadeira roda infancia
Elf Moondance
Havia um trecho dessa relíquia musical que, numa súplica, pedia: “Dorme, filhinho, mamãe tem o que fazer [...] Papai já dormiu muito e mamãe não dormiu nada”. Eu forçava o sono, porque me sentia culpada pelo cansaço de minha mãe. E percebia, claramente, o descompasso dos papéis domésticos em desequilíbrio no seio familiar.

Lembro que eu até inventei uma modinha para embalar meus filhos (essa história de balançar criança em rede para dormir foi mesmo passando de mãe para filha). Certamente, era uma versão meio improvisada da canção do pavão. E, num falsete desafinado, eu cantava, horas a fio:
cantiga ninar brincadeira roda infancia
Elf Moondance
“Peru, peru, peru, olha o peru, lá vem o peru, glu, glu”. Não sei se eles esperavam que a ave aparecesse e se tinham medo. Só sei que com essa raramente dormiam.

As cantigas de roda, por sua vez, anônimas e bem antigas, refletiam, nas brincadeiras que as acompanhavam, ideologias, preconceitos e concepções pedagógicas em relação aos costumes vigentes à época em que circulavam.

Pelo menos de uma delas eu gostava. No desenvolvimento da brincadeira que a acompanhava, uma de nós dizia: “Eu sou rica, rica, rica”, e outra completava: “Eu sou pobre, pobre, pobre”. A pobre tinha muitos filhos, os quais, um a um, iam sendo dados à pessoa rica, que atribuía ofícios a esses filhos “doados”. No final do processo, a mulher rica ficava pobre e a pobre tornava-se rica, numa clara defesa de que ter grande prole era sinal de pobreza e que ser rico era ter poder, inclusive sobre os outros.

Em relação a essa questão, ouvi certa vez um estudioso dizer que o que ocorria era justamente o contrário disso: as pessoas não eram pobres porque tinham muitos filhos. Elas tinham muitos filhos porque eram pobres!
cantiga ninar brincadeira roda infancia
Elf Moondance
Essa pobreza não seria só econômica, material, mas tinha a ver com falta de conhecimento, de informações, de apoio, de esclarecimentos sobre como fazer planejamento familiar e, assim, dar condições de vida necessárias a todos os que pudessem criar e manter com dignidade.

Outra cantiga que muito me impressionava era uma que falava de uma barata “pabulosa”, para quem tudo o que tinha era em maior quantidade e em melhor qualidade. Ao invés de ter raiva da barata soberba e mentirosa, eu sentia era pena, por ela ser tão feia e asquerosa ao ponto de ninguém querer ser amigo dela.

Uma das toadas mais conhecidas apregoava: “O anel que tu me deste era vidro e se quebrou. O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou”, numa alusão à fragilidade e à fugacidade dos sentimentos travestidos de eternos e imutáveis. Essa me deixava tão triste e desanimada…

cantiga ninar brincadeira roda infancia
Slideshare
Por fim, e para não me estender muito neste assunto, dentre tantas, “Atirei o pau no gato” foi a mais famosa e emblemática das composições. Além de cruel, violenta e portadora de desprezo pela vida animal, essa letra provocou muitos debates. Surgiu até uma versão politicamente correta que ajustava o texto para “não atire o pau no gato”. Uns queriam que as crianças não conhecessem a versão tradicional e, principalmente nas escolas, adotaram a forma eufemística de cantar. Já outros, assim como eu, defendiam que não se devia mexer na obra e que, a partir dela, as crianças poderiam ser convidadas a discutir e a meditar sobre o que transmitia.

Como no trecho de uma das cantigas, “da laranja quero um bague; do limão, quero um pedaço”, não era o doce da primeira fruta que me seduzia e me encantava, em meio às canções de ninar ou nas brincadeiras de roda. Era, sim, o amargor da segunda, que azedava meus pensamentos e me fazia refletir sobre o que simbolizava.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Alexandre Pimentel12/2/23 18:14

    Sempre gostei de animais e achava esquisita aquela história de "atirei o pau no gato".
    Até hoje, com mais de meio século vivido, sei de cor a letra da cantiga, mas ela nunca me influenciou em nada. Nunca atirei pau ou pedra em nenhum animal.
    Mas também não gosto de problematizar esses assuntos.
    Independentemente do "terror" que as canções podiam inspirar, a verdade é que os momentos em que elas foram ouvidas são lembrados com o carinho, a atenção e os cuidados que nossas mães, irmãs ou avós nos dispensavam.
    Daria tudo para ouvir para ouvir "o pau no gato" ou "o pavão no telhado" com a doce voz da minha mãe.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Verdade. Por isso, eu coloquei que a música do “xô pavão” era a pior e a melhor. Obrigada pelo comentário.

      Excluir
    2. (O comentário anterior é de Marineuma de Oliveira.)

      Excluir
  2. O repertório era o mesmo para todas nós, e fomos passando para nossos filhos.
    Não sei pq, mas, nunca senti medo desse pavão...rs

    ResponderExcluir

leia também