Como pôde o bandido fazer isso comigo? Logo agora, com o tempo de vida que tenho? Com a idade do apego maior às coisas e símbolos do passado?
O infeliz nos chegou, faminto e ensopado, do tamanho de um rato, por volta das 5 da manhã de um sábado chuvoso. Eu, a Patroa e os meninos saímos da cama a um só tempo para socorrer o dono daquele choro ininterrupto, desesperado. Alguém, às escondidas, o depusera na calçada a fim de que ele atravessasse a grade e subisse à varanda onde também guardávamos o carro.
Na idade do enxerimento, quase matava de tanto aperreio a mãe adotiva. Nenhum dos três filhos legítimos deu a ela tamanha preocupação. O patife ganhava as madrugadas para voltar, dois dias depois, lapeado, acabado, com a cara lisa. Os arranhões no lombo e no focinho denunciavam as brigas em que se metera, certamente, nas disputas por fêmeas com outros da sua laia. Tomasse cachaça, seria um malandro completo.
Cinco anos atrás, mudamos de endereço. Trocamos a casa com muros, jardim, quintal e telhado por um apartamento no bairro de Manaíra. Foi quando a mãe decidiu castrá-lo. E foi, também, a única vez em que dele me apiedei. Não se faz uma coisa dessas com nenhum cristão.
Dava pena vê-lo, depois disso, de cara para a lua, ora nas janelas ora na varanda do prédio onde hoje tenho uma rede, seja para leituras, seja para sonhar com tempos idos nos quais, réu confesso, também preocupei, em certa medida, minha santa mãe. Mas faço questão de esclarecer que a respeito disso nunca conversei com o sujeito de quem agora sinto raiva.
Motivo da minha zanga? Pois bem, Cremoso quebrou a licoreira, o único item subsistente da lista dos nossos (meus e de dona Miriam) presentes de casamento. Minto: ainda nos restam uns copos longos para uísque. Não mais existiram, talvez, se ela não os guardasse longe dos usos corriqueiros, ao substituí-los pelos copos curtos que me incomodam. É que reproduzem, em gravuras, cenas domésticas com o marido de avental a varrer a casa, lavar os pratos, lavar a louça, engomar a roupa, cozinhar, arrumar a cama e dar mamadeiras à cria pequena. Uma cena diferente para cada dia da semana. Vôte!
A licoreira era mantida em bandeja sobre móvel da sala de jantar com taças e algumas garrafas de gin, rum e uísque. Numa das pontas, uma adegazinha com porta de vidro e, na outra, um pequeno aquário, moradia do betta, peixe que não se dá bem com seus semelhantes.
Fiquei sem licoreira, logo agora, quando me deu vontade de fazer, pela primeira vez, licor de jenipapo. É fácil, ao que vi no YouTube. Basta que descasquemos, cortemos e trituremos 20 dessas frutas. Isso, com dois quilos de açúcar e pouquíssima água, a fim de obtermos um caldo grosso, a ser coado e cozido por coisa de 40 minutos. Depois do resfriamento, dois litros de uma boa cachaça ali misturada completarão a receita. Ah, que vontade... Duas pessoas que conheço, por conta dessa minha raiva, também irão ficar sem licor de jenipapo neste Natal. Ainda mato esse Cremoso.