Ah, viver é tão desconfortável. Tudo aperta: o corpo exige, o espírito não para, viver parece ter sono e não poder dormir – viver é in...

Amiguinha e Amigão

idade velhice maturidade
Ah, viver é tão desconfortável. Tudo aperta: o corpo exige, o espírito não para, viver parece ter sono e não poder dormir – viver é incômodo. Não se pode andar nu nem de corpo nem de espírito.
(Clarice Lispector)

Essa nada mole vida na terceira idade não tem sido fácil! Tema da redação do Enem: “Perspectivas acerca do envelhecimento na sociedade brasileira”. Não sei se os jovens que fizeram a prova tinham o conhecimento necessário para tal desafio, embora muito tenha se falado em etarismo, preconceitos e envelhecimento nos últimos anos. E sempre soube que, para qualquer exame, ler jornal, sites e estar bem-informado conta. Já eu, se fosse fazer a Redação, talvez tirasse dez. Muito o que contar sobre acordar, sair, solidão, invisibilidade, limitações, expectativa de vida, de como somos tratadas no diminutivo, os tantos fins, o ladeira abaixo, alegria de viver, amizades e amores. Ou a falta!

idade velhice maturidade
Curated Lifestyle
Mas há de se ter humor e rir de si mesma quando o assunto é viver, ainda mais depois do Cabo da Boa Esperança. Estava eu fazendo minha feira no Manaíra, em Seu Dedé, já na fila do caixa, quando chegou uma senhorinha (olha eu no diminutivo!), com seu carrinho atrás de mim, e me pediu: “Amiguinha, vou deixar o meu carrinho atrás do seu enquanto vou ali buscar um produto.” Depois, quando a procurei, tinha mudado de ideia sem nem dizer obrigada. Nem adeus!

No dia seguinte, quis ir ao Pão de Açúcar comprar umas guloseimas e, do jeito que estava em casa, fui. Já me disseram que, depois de uma certa idade (que idade certa seria essa, só Deus sabe!) não se pode sair desleixada. Estava de bermuda, camiseta enxovalhada, Havaianas
idade velhice maturidade
GD'Art
no pé e um boné de moleque na cabeça. Quando lá cheguei, parei o carro para abrir a cancela com o touch da mão. Tive que descer do carro para encostar a mão e nada do portão abrir. Na terceira tentativa, um vendedor de caju se aproximou e disse: “Amigão, está aberta!” Vergonha dupla. Primeiro, agi tão automaticamente que nem percebi que a cancela não funcionava e o portão estava aberto para todos. E depois, ser chamada de “amigão”. O moço me tomou por menino. Logo eu, uma “senhorinha” também. Saí por ali, comendo um capinzinho, como dizia meu pai. Sem graça e pensando na vida. Amiguinha ou Amigão?! Eis a questão!

Hoje, na fisioterapia, me ofereceram uma cadeirinha. Na musculação, o personal chama meu muque de “tchau” (o músculo mole que balança quando damos tchau!); ou diz: “Levante o bracinho, baixe a perninha...” Fiquei a pensar na vida de novo! E, seja malhando, recebendo aparelhos para as tendinites, fazendo mercado ou qualquer outra coisa do dia a dia, somos lembradas dos anos que nos acompanham. E com ironia e sarcasmo.

idade velhice maturidade
Marcelo Gleiser Luciana Whitaker
Ouvindo os podcasts em tantos assuntos e com tanta gente genial, tiro proveito e lições. O podcast “Tantos Tempos” me instiga a ouvir e tirar lições ou discordâncias, ou admirações por gente que tenho simpatia e aprecio. Já ouvi Marcelo Gleiser falando das estrelas; Zizi Possi e Alexandre Coimbra; Giovana Madalosso e Casagrande; Renata Lo Prete e Ronaldo Fraga; Mário Prata, Viviane Mosé, Monja Coen, Arrigo Barnabé, Ignácio de Loyola, Eduardo Giannetti, Ivaldo Bertazzo, Chris Dunker, Xico Sá, Laerte Coutinho, Bob Wolfenson, Drauzio Varela, só para citar alguns. Sempre em duplas. E gente de tantas áreas e idades diversas. Tantos pensamentos!

E eu mesma me pergunto: Quando comecei a envelhecer? A vista cansada aos 39 anos me abriu os olhos. Mas ainda era jovemmm: “Envelhecer tem vantagens e desvantagens: deixas de ver as letras de perto, mas passas a ver os idiotas ao longe.” (Mafalda) Acho que, para as mulheres, a menopausa é um marcador. Os cabelos brancos? As rugas? A insônia? As guloseimas que temos que frear? Tudo isso
idade velhice maturidade
Curated Lifestyle
compõe um retrato. Mas em que retrato me perdi? Cecília Meireles se perguntava. Mas há coisas mais subjetivas do envelhecer. A invisibilidade nossa de cada dia é outro marcador. Não importa se de calça jeans, regata e tênis, somos senhorinhas. O cansaço físico e mental de tantas coisas. A preguiça. O ficar em casa involuntário. Uma certa impaciência. O medo da doença. Da morte. E a convicção de que temos pouco tempo. Isso é o que me pega. Mas sem muita neura; se não, esquecemos de viver. Acho que tudo vai formando o quadro da velhice.

Mas sou uma otimista. Com pequenas doses de melancolia. Então tento olhar o lado bom da moeda. A segurança do que se quer ou não. A não necessidade de agradar mais. Uma certa calmaria. Até demais por vezes. A percepção de que tudo passa. Uma resiliência diante das coisas difíceis. Aceitação e adaptação sem maiores atropelos. E, quando o podcast pergunta: “O que é uma boa vida?”, acho que é olhar para trás com alegrias e faltas. Pois ninguém consegue viver tudo o que quer numa única vida. Bom trabalho, bons amores e uma leve, só leve, sensação de que a vida presta!

“A vida é breve, mas cabe nela tudo: o riso, a dor, o amor, o sonho...” (Cecília Meireles)



COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também