O Centro Cultural São Francisco foi cenário da segunda edição do Festival Literário Internacional da Paraíba, o FliParaíba, realizado no último mês de novembro. Ao longo de três dias, diversos escritores, pensadores e ativistas cruzaram os umbrais do antigo Convento Franciscano de Santo Antônio, para debater Literatura e temas culturais e sociais, além de lançar livros e aproximar-se do público leitor.
Alguns dos pensadores e escritores que participaram das palestras e debates da Feira Literária Internacional da Paraíba 2025, realizada no Centro Cultural São Francisco, em João Pessoa. ▪ Imagens: CCSF
Pus-me então a refletir quantos outros intelectuais também contemplaram aquele conjunto arquitetônico do século XVIII, que expressa todo o esplendor do barroco brasileiro. Um desses ilustres visitantes foi o escritor Mário de Andrade, em 1929.
Conjunto barroco da Igreja de São Francisco, em João Pessoa, com a fachada e o adro revestidos de detalhes esculpidos que marcam a arquitetura religiosa do século XVIII. ▪ Fonte: T.Advisor
Um modernista assombrado com o barroco
Entre novembro de 1928 e fevereiro de 1929, Mário de Andrade empreendeu uma expedição pelo Nordeste para realizar uma série de pesquisas etnográficas. O escritor registrou suas impressões em um diário, publicado somente em 1976 sob o título de O Turista Aprendiz. A edição de que me valho é a do Instituto do Patrimônio Histórico e
O Turista Aprendiz (edição de 2015) reúne as crônicas das viagens de Mário de Andrade pelo interior do Brasil, publicadas no Diário Nacional no fim da década de 1920. ▪ Editora Iphan
Artístico Nacional (Iphan), publicada em 2015.
O primeiro registro de Mário na Paraíba data de 28 de janeiro de 1929 e narra o acolhimento recebido dos escritores José Américo, Ademar Vidal e Silvino Olavo. O autor de Macunaíma anotou que pouco conhecera do estado, uma vez que passou os primeiros dias de sua estadia trabalhando, “colhendo uma coleção bonita mesmo de cantigas e danças.”
No dia 30 de janeiro de 1929, Mário registrou sua chegada ao Convento de Santo Antônio, que ele erroneamente chamou de “Convento de São Francisco”, e que conhecia apenas por fotografias — “e fotografias ruins”, como anotou. Diante do adro do convento, agora visto de perto, Mário quedou-se “assombrado” contemplando a “igreja mais graciosa do Brasil”. Deixemo-lo falar por si:
Estou assombrado. Do Nordeste à Bahia não existe exterior de igreja mais bonito nem mais original que este. E mesmo creio que é a igreja mais graciosa do Brasil – uma gostosura que nem mesmo as sublimes mineirices do Aleijadinho vencem em graciosidade. Não tem dúvida que as obras do
Janeiro de 1929: Mário de Andrade no adro da Igreja de São Francisco, em registro que destaca o escritor diante da harmonia barroca do conjunto arquitetônico. ▪ Fonte: IEB
Aleijadinho são de muito maior importância estética, histórica, nacional e mesmo as duas São Francisco de Ouro Preto e São João del Rei serão mais belas, porém esta de Paraíba é graça pura, é moça bonita, é periquito, é uma bonina. Sorri.
O interior é irregular e já está bem estragado por consertos e substituições. Assim mesmo possui um púlpito, joia de proporção e desenho. As pinturas também são excelentes. Um dos altares laterais, completado no tempo, mostra também pinturas dum
primitivismo inconscientemente plástico bem forte e bem cômico.
Os azulejos são dos mais ricos que já vi, suntuosos. O pátio exterior é murado por eles também e mostra nichos com cenas da Paixão ainda em azulejos magnificamente desenhados e que assim, emoldurados pelo nicho e distantes uns dos outros, a gente pode isolar, contemplar e gozar bem.
Nicho com azulejos portugueses no muro do adro da Igreja de São Francisco, com cenas sacras moldadas por traços delicados e tons tradicionais do barroco luso. ▪ Fonte: T.Advisor
Na frente de tudo o cruzeiro é um monolito formidável. Estou assombrado. Paraíba possui um dos monumentos arquitetônicos mais perfeitos do Brasil. Eu não sabia... Poucos sabem...
A beleza do barroco paraibano é tal que faz convergir olhares que, noutras circunstâncias, divergem: o de Mário de Andrade, modernista de primeira hora, e o de Gilberto Freyre, crítico da “estridência” de 1922.
Um sociólogo entusiasmado com a arte religiosa colonial
Gilberto Freyre esteve no atual Centro Cultural São Francisco em 1942. É o que atesta uma notícia publicada pelo jornal A União no dia sete de maio daquele ano, com a qual me deparei enquanto fazia uma pesquisa completamente diversa.
Desde 1894, o convento franciscano vinha abrigando o Seminário Arquidiocesano da Paraíba, que, pelo que sugere a declaração de Freyre, passava por um processo de restauração. O autor de Casa Grande & Senzala deu o seguinte depoimento à reportagem:
“Esta nova visita às obras do Convento de São Francisco da Paraíba só faz aumentar meu entusiasmo por êsse monumento de arte religiosa do Brasil colonial [sic]. Os paraibanos podem e devem orgulhar-se do velho convento que depois de restaurado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, surgirá aos olhos de todos com sua antiga pureza de linhas e com seus ornatos de sabor liricamente brasileiro.”
Jornal A União de 7 de maio de 1942: entrevista com Freyre. ▪ Fonte: A União
Anos mais tarde, em 1959, Freyre publicou o ensaio A Propósito de Frades, no qual investiga a influência dos franciscanos na formação das modernas civilizações por ele denominadas “hispano-tropicais”.
Detalhe da sacristia da Capela Dourada. ▪ Imagem: CCSF
Freyre cita o convento paraibano entre os “velhos redutos de ação, de arte e de ciência franciscanas no Brasil”, e, ao tratar do patrimônio franciscano no Nordeste, volta a mencioná-lo, anos depois de sua visita. Escreveu Freyre:
“Os valores consagrados ao culto franciscano de Cristo, da Virgem e dos Santos constituem no Recife, como em Olinda, como, outrora, em Igaraçu, e como, ainda hoje, no velho convento seráfico da Paraíba, conjuntos admiráveis pelo que nêles, sendo ouro, prata, madeira de lei, azulejo, mármore, é, também, medida ou continência com relação aos arrojos de forma e de côr, característicos dos antigos cultos de Deus e dos Santos na maioria das igrejas e dos conventos do Brasil.” [sic.]
Casa de Oração da Ordem Terceira de São Francisco, também conhecida como Casa dos Exercícios, marcada pelo barroco-rococó em sua arquitetura. ▪ Imagem: CCSF
Depois de Mário e Freyre, outro grande intérprete da cultura brasileira que voltou seus olhos para o mesmo conjunto foi Luís da Câmara Cascudo. Com sua argúcia de folclorista, deteve-se a comentar sobre as esculturas de sereias que adornam o templo.
Câmara Cascudo (1898—1986), historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado, jornalista e escritor potiguar, nascido em Natal.
Um folclorista diante das sereias de pedra
O nº 25 da revista O Cruzeiro, publicado em cinco de abril de 1952, trouxe o artigo As Sereias na Casa de Deus, assinado por Cascudo. Ele chamou a atenção para a presença dessas criaturas, metade mulher, metade peixe — “símbolos da sedução irresistível, sugestão carnal endoidecendo jangadeiros e pescadores” —
A sereia que ornamenta o lado direito da base da sacristia da Capela Dourada, no conjunto arquitetônio São Francisco. ▪ Imagem: CCSF
adornando os lugares mais sagrados do templo franciscano: duas nas bases das colunas do Santíssimo Sacramento e outras duas no altar-mor. Lá estavam elas, descreve Cascudo, com “a cabeleira em concha, o cinto venusino abaixo dos seios, uma volta de flores na altura do ventre e um longo corpo ictiforme volteando como ornamento e moldura.”
Cascudo observa que sereias semelhantes podem ser encontradas em outras igrejas, em diversas partes do mundo: Portugal, Travanca, Cabeça Santa, Rio Mau, Almas Santas. As sereias paraibanas, contudo, distinguem-se das demais pela pose singular: têm a “mão direita à cinta, elegantemente, e a sinistra fingindo suster o rebordo trabalhado em relêvo da cornija”, descreve o folclorista.
⏤ Não conheço exemplos brasileiros além do paraibano — concluiu Cascudo.
Em seguida, ele passa a discorrer sobre a iconografia fantástica dos templos medievais e como as sereias e outros seres pagãos foram absorvidos pelo catolicismo. Segundo o folclorista, nesse processo de inculturação cristã, as sereias deixaram de possuir conotação erótica e assumiram função essencialmente fúnebre, uma vez que, na Grécia antiga, estavam ligadas ao culto dos mortos e figuravam em epitáfios, epigramas e súplicas funerárias. As sereias da Igreja de São Francisco evocam então essa missão antiga e possivelmente litúrgica. Assim, a figura da “sereia funérea” — guardiã dos mortos, inclinada sobre as sepulturas — é, para Cascudo, a explicação clássica das sereias do conjunto franciscano datado de 1779.
Sacristia da Capela Dourada, no conjunto arquitetônico de São Francisco, ornada com figuras de sereias, esculpidas em sua base. ▪ Imagem: T.Advisor
É realmente notável o conjunto arquitetônico franciscano da Paraíba. Cascudo poderia ter explorado muitos outros elementos além das sereias que tanto o intrigaram. Há também o Cão de Fô, em pedra calcária, colocado no topo do muro do adro como guardião do templo: testemunho das influências arquitetônicas trazidas do Oriente pelos missionários franciscanos.
Cães de Fô (ou Leões de Foo), instalados no muro do adro da Igreja de São Francisco ▪ Imagens: Reginaldo Marinho
Ou mesmo o pátio em estilo mourisco e a escadaria de acesso ao primeiro andar, cujo corrimão em pedra traz uma imagem esculpida que remete a influências incas ou astecas. Popularmente, essa figura é conhecida como “mascarão”.
No alto: o pátio interno em estilo mourisco do conjunto arquitetônico de São Francisco. ▪ Na imagem inferior: o “mascarão” de pedra no corrimão, inspirado em motivos indígenas. ▪ Imagem: T.Advisor
Gilberto Freyre, por sua vez, provavelmente se interessaria mais por outro detalhe do frontispício: duas máscaras que ladeiam a fachada e representam o elemento indígena, essencial na construção do conjunto. Já na sacristia, dois anjos negros pintados no forro remetem aos escravizados, cuja contribuição foi decisiva na edificação do templo.
Máscaras indígenas na entrada da Igreja de São Francisco ▪ Imagens: Reginaldo Marinho
Talvez tenha sido por toda essa atmosfera mágica, um tanto Armorial — onde sereias, cães orientais, máscaras indígenas e anjos negros convivem — que Ariano Suassuna incluiu o Convento de Santo Antônio em sua magnum opus, O Romance d’A Pedra do Reino.
Um “Decifrador” e o túnel da Igreja
Transportamo-nos agora à Vila de Taperoá, em 1938. Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, auto-proclamado ‘O Decifrador’, Rei do Quinto Império e do Quinto Naipe, Profeta da Igreja Católico-Sertaneja e pretendente ao trono do Império do Brasil, encontra-se preso em razão do processo penal do “crime enigmático” e “indecifrável” no qual foi implicado: o assassinato do seu tio e padrinho, Dom Pedro Sebastião, em 1930.
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Além disso, Quaderna estaria envolvido em acontecimentos subversivos ocorridos no Nordeste entre 1930 e 1937. Dentre esses acontecimentos estão sua participação, junto de alguns membros de sua família, na Revolta de Princesa e na Revolução de 1930, bem como seu suposto apoio à Revolução de 1935, da qual teria tomado parte por seguir seu primo Sinésio — considerado pela elite local como suspeito de estar a serviço de Luís Carlos Prestes.
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Chegamos, então, ao Folheto LI, intitulado O Crime Indecifrável, no qual Quaderna continua dando seu depoimento ao juiz-corregedor sobre o rapto de Sinésio. Em dado momento, Quaderna afirma:
⏤ [...] As versões, como eu disse, eram as mais desencontradas possíveis! Num ponto, porém, todos os partidários dele concordam: diziam que, depois de raptado, Sinésio fora levado para a Cidade da Paraíba, capital do nosso Estado, e encarcerado debaixo da terra, num subterrâneo cavado durante a “Guerra Holandesa” e que liga a Igreja de São Francisco à Fortaleza de Santa Catarina, situada em Cabedelo, a umas três ou quatro léguas de distância da Igreja!
⏤ Esse subterrâneo não existe, Sr. Quaderna! Isso é patranha! — redarguiu o juiz-corregedor. — Aqui no Nordeste, em todo lugar por onde os Holandeses passaram, no século XVII, o Povo inventa que existe um subterrâneo cavado por eles! São imaginações descabidas da ralé ignorante da Paraíba!
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⏤ Pode ser; Excelência, não sou eu que sustento essa história não: estou contando o que me disseram e vendendo a história ao senhor pelo preço que me venderam! [...]
Quaderna, alter ego de Ariano Suassuna, cita uma lenda que continua a povoar o imaginário coletivo em torno do templo: a existência de um túnel que ligaria o Convento de Santo Antônio ao porto de Cabedelo. A raiz dessa lenda talvez esteja no fato de que, com a invasão holandesa, o convento foi danificado e, em 1636, os frades foram expulsos, sendo o edifício transformado em posto militar. Sua localização era estratégica: dominava todo o vale do Sanhauá e tinha comunicação pelo rio Paraíba até Cabedelo.
Segundo a tradição oral, o subterrâneo teria sido construído para facilitar fugas ou o transporte sigiloso de mercadorias, possivelmente por autoridades coloniais ou religiosos do período. Há versões que atribuem seu uso a frades franciscanos; outras, mais aventurosas, afirmam que piratas o teriam utilizado para práticas de contrabando.
Uma coisa é certa: o Centro Cultural São Francisco desperta o interesse e o fascínio de todos quantos o visitam. Desde o modernista Mário, “assombrado” diante da “graça pura” que é o templo — uma “moça bonita”, “periquito”, “bonina”, uma igreja que “sorri” —; passando por Gilberto Freyre, entusiasmado com a “pureza de linhas” e os “ornatos de sabor liricamente brasileiro”; e por Câmara Cascudo, atento às sereias fúnebres que guardam os altares; até chegar a Ariano Suassuna, que incorporou a lenda do túnel à sua trama aventurosa e mítica, sua verdadeira epopeia sertaneja.
Ariano Suassuna (1927—2014), escritor, filósofo, dramaturgo, professor, romancista, artista plástico, ensaísta, poeta, político e advogado paraibano, nascido na Parahyba do Norte (atual João Pessoa) ▪ Fonte: Acervo PE
Talvez por isso o FliParaíba tenha sido realizado naquele templo: para despertar, nos escritores contemporâneos, a mesma criatividade, o mesmo espanto, a mesma admiração que, ao longo de quase três séculos, esse conjunto franciscano inspira nos que o contemplam.