Daniel não me saiu da cabeça a semana inteira. Ele mesmo, o profeta, aquele em cujo benefício Deus cerrou as bocas dos leões de Dario...

Jogado à fera

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Daniel não me saiu da cabeça a semana inteira. Ele mesmo, o profeta, aquele em cujo benefício Deus cerrou as bocas dos leões de Dario. Diz-se que isso ocorreu na Babilônia, entre 522 a 486 antes de Cristo, por aí assim.

E vejam que Dario gostava de Daniel, homem íntegro, sábio, sem máculas. Homem que, por sua sabedoria e honestidade, fizera-se o mais confiável conselheiro do rei. Este último, mesmo entristecido, mandou o
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Daniel na cova dos leõesH.O. Tanner, 1895 ▪ Museu de Arte de Los Angeles, EUA
amigo às feras pelo descumprimento da lei que proibia, por 30 dias seguidos, orações a qualquer deus, ou ser humano, que não fosse ele próprio, Dario. Que diabo de rei foi esse que se deixou persuadir de tal maneira pelos inimigos daquele de quem muito gostava?

Daniel, é claro, não deixaria de fazer, um dia sequer, suas três preces ao Pai Eterno. Dario o encontrou vivo na cova dos leões, onde o atirou e de onde o retirou, 24 horas depois, sem um mínimo arranhão, para ouvir a bela história de fé, perseverança e salvação conhecida até os dias de hoje. Os anjos, contou o profeta, haviam lacrado as bocas daqueles bichos.

Verônica também não me saiu da cabeça desde o último domingo. Ela e seu lamento: “Gerson, meu menino sem juízo. Quantas vezes, na sala do Conselho Tutelar, você disse a mim que iria pegar um avião para ir à África cuidar dos leões?”. Verônica dirigia-se, então, a Gerson de Melo Machado, o Vaqueirinho, o jovem que não conseguiu ver seu vigésimo Natal.

Verônica dirigia-se a quem já não era capaz de com ela conversar. Mesmo assim, contou a seu jovem amigo da dor que sentia na alma. Quem se dispôs a ouvi-la, mundo a fora, conheceu o drama pessoal do
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H.O. Tanner, 1893
menino abandonado e tão doente quanto a mãe e a avó igualmente esquizofrênicas. O menino que insistia na volta ao lar para o aconchego de quem, a seu exemplo, não tinha cuidados nem juízo. O menino que apedrejava carros de polícia para, trancafiado, ter a alimentação e as atenções de outrem, mesmo às avessas. Não nos custa crer em que foram bem amargas suas primeiras bolachas.

A todos os ouvidos, dentro e fora do País aonde essa tragédia chegou, Verônica, a conselheira tutelar, contou uma história longa de abandono doméstico e institucional. Disse do quanto lutou para o amparo e o tratamento psiquiátrico devidos a Vaqueirinho, cujos irmãos, sem problemas mentais, tiveram a sorte da adoção por famílias diversas. E eram quatro.

Vaqueirinho entrou pela primeira vez na sala de Verônica, aos 10 anos de idade, conduzido por agentes da Polícia Rodoviária quando perambulava à beira de uma estrada de jurisdição federal. Para onde ia? Para a África? Tempo depois, retornou ao Conselho Tutelar advindo, desta vez, do Aeroporto. Atinara que a África era muito longe. Melhor, então, entrar no trem de pouso de um avião da Gol. A vigilância aeroportuária o surpreendeu antes que isso ele fizesse.

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H.O. Tanner, c.1900
“Foram oito anos acompanhando, brigando para garantir teus direitos”, lastimou a alma boa de Verônica na conversa com quem não mais lhe respondia. Seus olhos e sentimentos nunca viram aquele moço do modo como o retratavam as redes sociais.

Quem ainda não me sai da cabeça é aquele delegado paranaense interessado no estado de saúde do animal que abateu Vaqueirinho. Informado das 16 passagens do rapaz pela polícia, ele comentou: “Espero que a leoa esteja bem”.

Está não, meu senhor. Quem nasce e cresce numa jaula não pode estar bem. Talvez, a exemplo daquele que feriu de morte, ela sonhe com savanas, terras de horizonte a horizonte, espaço infinito para correr e viver. Assim o fará por instinto, o mesmo instinto que a levou a atacar aquele que lhe invadia o diminuto e sufocante território.

Sim, os bichos sonham, a crer-se nas pesquisas neurológicas segundo as quais mamíferos e aves também atingem a fase do sono conhecida como REM, sigla em inglês para “Movimento Rápido dos Olhos”. Observe seu cachorro, ou seu gato. Veja quando, adormecidos, eles têm espasmos, agitam as patas, emitem latidos e resmungos. Estão a sonhar. Mas não acredite em mim,
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H.O. Tanner, c.1897
consulte um especialista e aproveite a ocasião para perguntar se o senhor mesmo está bem.

Não é de hoje que a humanidade atira seus semelhantes aos leões. Cipião Emiliano, depois da conquista de Cartago, jogou os desertores às feras, em 146 a.C. Mas há relatos dessa natureza ainda mais antigos. Na velha Roma, a prática de jogar seres humanos aos felinos tem registros com data por volta do século II a.C. Começou com criminosos e escravos e se expandiu aos cristãos. Até o século III d.C, essa coisa evoluiu para um espetáculo público terrível, uma forma de execução capital em arenas superlotadas por todo o Império Romano, ao que leio.

Não se sabe de cristão vivo depois de assim atacado. Nenhum teve a sorte de Daniel, não é Nero? Palmas, então, para os santos do Velho Testamento. Mas, em benefício da fé cristã, torna-se imprescindível a crença de que todos aqueles mártires, sem exceção, tiveram os espíritos arrebatados por hostes celestiais para a vida e a glória eternas.

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H.O. Tanner, 1922
A piedade, sentimento inevitável aos de bom coração, também impele os conhecedores da sina de Vaqueirinho à crença de que, agora, ele vaga, senhor de si e de seus atos, em meio aos santos. No Paraíso, onde não cabem a mágoa nem a raiva, ele haverá de perdoar um sistema podre e impiedoso que o empurrou para as garras de Leona, a leoa.

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  1. Assunto triste que o cronista aborda com as palavras certas e o sentimento adequado, levando o leitor a solidarizar-se. Estou com você, Frutuoso. Francisco Gil Messias.

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  2. Marcella Borges Varandas5/12/25 07:37

    Tristeza profunda sinto com essa história, tão bem escrita pelo nosso piedoso cronista. Me conforta a crença de que ele vaga, senhor de si, em meio aos santos...

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  3. Amigo e conterrâneo Frutuoso , na nossa infância , em Pilar , os cachorros não chegavam a ser leões… fui mordido apenas pelo cão, dono do cartório , quando passava à padaria do teu pai. Sobrevivi. Hoje, no A União , retribuo-lhe com a crônica “Bom senso, medo e carícias às feras”. Teu texto está maravilhosamente belo e cheio de fé e piedade …

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    1. Grato, amigo. Um abração, Frutuoso.

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  4. Querido Fruto, o mais admirável no seu texto de hoje é a abordagem , que trata com imenso respeito uma tragédia que se projetou sobre todos de forma avassaladora. Infelizmente , somos pessoas expostas frequentemente a episódios dolorosos, que os noticiários replicam sem compaixão.Basta o feminicídio, cada vez mais perverso , para sugerir que nada mais poderá nos surpreender .Mas vem a morte desse jovem Daniel e nos abala como se vivêssemos o pior dos terremotos. A tragédia de que temos notícia pelas narrativas históricas, no tempo em que os anjos do Céu desciam à terra com suas providências. Sei bem o que é ser jogada à cova dos leões .Você veio em meu socorro, como se fosse um anjo do céu.Nao calou as palavras que me flagelavam , mas deu o testemunho da verdade e da amizade superior. Aquela que não engana .Ao jovem Daniel, faltou tudo. Num delírio , ele se entregou à morte,como sempre viveu, estraçalhado pela vida.

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  5. Gratíssimo, Ângela. Reafirmo a você minha amizade e minha admiração. Frutuoso.

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