Marruá era o apelido de João. No breve tempo em que participou de nossas brincadeiras diárias, nós o chamávamos de João. Sobrenomes não existiam entre os pequenos, e nunca vim a saber o dele. Apenas um pouco mais velho do que os meninos de minha geração, a alcunha seria batismo dos carregadores, ao comprovar a força e capacidade de trabalho de João. Bem mais pobre do que nós, logo as generosas sacas de açúcar e de farinha alistaram sua força, e passamos a encontrar João somente aos domingos de manhã, no racha da Sovaqueira, única generosidade do capital selvagem àquela mal inaugurada adolescência. Sem direito a escola, seus colegas carregadores, alguns adultos, outros quase maduros, se encarregaram da docência, e João, que a partir desse convívio seria Marruá até o fim, com idade de ser iniciado em Monteiro Lobato e nas coisas do coração, foi iniciado em Carlos Zéfiro, no bordel e na cachaça.
Os professores de João não precisaram de muita didática: a pedagogia do cansaço, dia após dia, e a ausência de qualquer possibilidade de sonho arrastaram definitivamente o ingênuo João para o oblíquo acalanto das garrafas e para o submundo dos pobres corpos que se alugam. Mas o dinheiro era curto. Muito curto. Quase todo ia parar nas mãos do pai de João, que ganhava outra migalha, e tinha a mãe e mais três crianças em casa para sustentar. E Marruá, que passou a brincar com Baco e Vênus, deu adeus à Sovaqueira, abraçou as cargas até no domingo e passou a sorver, todos os dias, toda a aguardente vagabunda que cabia em seu curto bolso.
Em todo o bairro da Prata, Marruá era conhecido pela força e pela capacidade de trabalho. Entre uma saca de fubá e uma saca de arroz, ele dilatava o tempo e limpava um quintal, arrancava um tronco recalcitrante, ajudava a limpar uma fossa... Não escolhia trabalho. Admirado por seus braços, também o era pela quantidade de cachaça que sorvia em grandes goles, boca na garrafa, sem nunca perder um gole para o santo ou cuspir algumas gotas, nojento gesto habitual entre os cachaceiros, que sua sede dispensava.
Mas os professores de Marruá só puseram no quadro-negro o açúcar da cana e os encantos de Vênus. Marruá não decifrava o nome aguardente, e os 38 graus iam derretendo seus músculos e nervos. Marruá não conhecia os abismos de Vênus, e a ordinária deusa, ao lhe vender minutos de prazer, deixava-lhe tatuagens na pele e na veia, que a ignorância grande e o curto dinheiro não podiam apagar.
Marruá foi regressando a João. A princípio, a custo carregava a saca de 60 quilos, que já não erguia. Depois, os músculos, lassos, nem as carregavam mais; só aceitavam sacos menores, e isto, além da zombaria, encurtava os já pequenos ganhos. Marruá, embora continuasse sendo chamado assim, via a sua força se esconder e os sacos começarem a sumir. Restavam pequenos biscates, que mal financiavam seu vício. Marruá, que era a viga mestra da família, despencara sobre si mesmo, e agora a vida virava areia movediça.
Quase sempre sem um tostão no bolso, passou a fazer ponto à porta de Seu Cristino, de quem varria a calçada e a bodega, em troca de uma sobra do almoço e um pouco de cachaça, que o bodegueiro só lhe entregava no final do dia. Ao longo do dia, seguia pedindo a um e a outro cachaceiro que lhe pagasse uma lapada.
Alguns porcos (animal que costuma travestir-se de gente) com algum dinheiro na alma e nenhum escrúpulo no bolso diziam com um sorriso de hiena: “Só pago se for uma garrafa: e você tem de tomá-la todinha enquanto eu estiver aqui”. E Marruá, num lasso sorriso de sede, tragava inteiro o áspero vidro, embora algum tempo depois fosse delirar o resto do dia na calçada da bodega. Mas, depois de um certo tempo e muitas garrafas, os vis reptos dos porcos já não abriam o sorriso de Marruá – o juízo já não suportava aquela medida: três lapadas já o colocavam em órbita, e tudo que ele conseguia era ofender-se e, na sua lhanura, emudecer.
Marruá continuava a fazer ponto na bodega de Seu Cristino, onde, entre uma zombaria e outra, pedia que lhe pagassem uma, e passou a pedir comida nas casas. Sua fama de forte foi completamente apagada, mas, embora o nosso campeão da garrafa agora mal vencesse um copo, os recordes que batera na bodega de Seu Cristino, no auge de seu vigor, permaneciam como referência na mitologia do bairro, e o nosso pobre-diabo continuou sendo o padrão mensurador dos cachaceiros da Prata.
Uma das casas a que prestou muitos serviços e em que agora costumava pedir uma sobrinha de comida era a casa de Seu Antônio e Dona Cristiana. Este casal de idosos, com seu pequeno horizonte de informações, vivia disputando o troféu do saber. Os dois estavam vendo o jornal da noite. Uma das manchetes anunciava o ganhador do Prêmio Nobel da Paz. Dona Cristiana, do alto de sua ânsia de saber e de desafiar o marido, indaga-lhe: “E o que é esse Prêmio Nobel, Tonho?” E Seu Antônio, com o orgulho e a felicidade de poder ilustrar, com todo o seu saber, a mulher, responde-lhe: “Cristiana: tu não sabes que é um prêmio que se dá ao melhor do mundo?”. Dona Cristiana, não satisfeita ainda, insiste: “Dá um exemplo, Tonho.” Seu Antônio, na bucha: “Por exemplo: Marruá, na cachaça.” E dona Cristiana, por entre dentes: “Exemplo bom, este, viu?”
Ao menos como figuração, Marruá foi agraciado com o Nobel, e, sem que o soubesse, o nosso João “subiu ao céu, num avião de papel.”
Quando tornei-me escritor profissional tomei um susto ao deparar-me com a palavra Paideuma! Devo explicar que para mim escritor profissional não é necessariamente quem ganha dinheiro com literatura (isso quase ninguém ganha no Brasil), mas quem vive em função do mundo e da vida literária.
Eu não gosto da junção de palavras que, por força do uso, da repetição, dissemina o lugar-comum, o já lido e relido, os clichês, os chavões, o dejà vu. Antes, gosto dos paralelos insólitos, das palavras ou dos temas que só aparentemente se repelem. Enfim, gosto da poesia e da ficção que guardem uma certa semelhança com a loja de belchior do conto do “Bruxo de Cosme Velho”, onde convivem objetos heteróclitos, desencontrados, mas que se compõem e se complementam: panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, caixilhos, binóculos, um cão empalhado, dois cabides...*
O mito da mulher perfeita foi criado pelos trovadores. Como a sociedade feudal era extremamente machista, e lá a figura feminina não decidia nada (a não ser, por exemplo, com que plantas aromáticas iria lavar os pés do marido), era necessário compensar essa inferioridade dando a ela contornos ideais. Nas cantigas, a mulher não é a escrava do cotidiano – é a senhora, ou a “mia senhor”. Esse tipo de culto se limitava ao plano da arte, claro; no dia a dia, a discriminação continuava a mesma.
Antes da pandemia, vi numa livraria uns títulos estranhos. Tinham a ver com 1001 sugestões de filmes e livros para ver e ler antes de... morrer. Achei estranho, volto a dizer. E um pouquinho mórbido, também. Afinal, não é toda hora que somos lembrados assim de nossa mortalidade, de forma tão explícita. Será bom? Provavelmente, sim. Desconfortável? Idem. Necessário? Talvez.
Mais um episódio da ALCR TV entra no ar com atualidades do mundo cultural, participação dos autores, leitores e telespectadores do Ambiente de Leitura Carlos Romero.
Nesta pauta, destaque para o lançamento do novo livro do ambientalista e sanitarista Sérgio Rolim Mendonça, "A saga do Chanceler Rolin e seus descendentes"; o "Dicionário de Eneida", do professor Milton Marques Júnior, e o Concurso de Poesia Sertaneja promovido pela Acauã.
Além dos comentários dos leitores Djane Santos, Sol Pordeus e Carlos Augusto Romero Filho. Não deixem de assistir até o final.
Um arrebatamento literário após uma peregrinação de sofrimentos ao desvendar o homem e da terra dos sertões brasileiros. Euclides da Cunha mergulhou no interior nordestino com uma visão e retornou com um novo olhar. Consegue, em que pese a proximidade histórica com os fatos narrados, criar com estilo literário, mas também como precisão documental, uma obra-prima sobre um capítulo sangrento da história brasileira.
Estou cansado. Chega uma hora em que a gente cansa, cansa de agradar, de fazer e de sorrir. Porque nada motiva a sorrir. E só se deixa de sorrir em duas situações, ou quando o corpo está enfermo ou quando se é esquecido.
No porão de um prédio localizado na Sheridan Square, no bairro novaiorquino de Greenwich Village, funcionou a boate Café Society, entre os anos de 1938 e 1949. A casa foi um dos primeiros espaços da metrólope norteamericana em que se deu a integração entre brancos e negros, tanto no palco como na plateia.
Aqui no Nordeste não temos as estações bem definidas. Popularmente temos o verão, com o sol, e o inverno com o tempo das chuvas. Muitas vezes o que anuncia a mudança de estação são as chuvas do caju, da manga, da jabuticaba, e logo entendemos que o “verão” está chegando.
Deve estar pisando nos 90 anos. Em 1945/46, aluno do Pio XI do padre escritor Odilon Pedrosa, eu me via sem cancha para entrar no time em que ele e Cabralzinho jogavam por todo o resto. Balduíno de Taperoá, mas na rua de Campina, com João Loureiro, mandando nos frangotes do seu tope. Olhavam por cima no jogo ou em qualquer outra encrenca. João Loureiro do G.A.D., Balduíno do colégio do padre.
A visão usurpou o direito e o espaço dos demais sentidos.
Para uma pessoa que tem no olhar a fonte de sonhos e de vida, é difícil aceitar, é difícil até mesmo formular essa afirmativa. Mas, como existe uma diferença entre ouvir e escutar, a visão também difere do olhar – ela carece de sensibilidade e é mais passível de manipulação.
Não quero jamais perder a capacidade de sonhar. Tudo na vida começa com um sonho. Todas as conquistas, em qualquer dos aspectos de nossa vivência (profissional, amoroso ou familiar), são resultados de desejos alimentados por sonhos. Mas não basta sonhar, é preciso lutar para que eles se realizem.
No Evangelho de Mateus (6, 34), Jesus, em continuidade ao “Sermão da Montanha”, diz em alto e bom som: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã preocupar-se-á consigo mesmo. Basta ao dia o mal que lhe pertence”.
Há certos fatos que nos impulsionam a procurar descobrir com quais argamassas são feitas as pilastras que sustentam os sonhos e os desejos mais despretensiosos do ser humano.
Foi na poesia de Manuel Bandeira que pela primeira vez atravessei as ruas do Recife antigo. Com vinte anos eu era um camponês que andava olhando para o chão, mas por sugestão do amigo Nathanael Alves, realizei uma fantástica caminhada pelas alamedas e quintais com fruteiras daquela cidade e debaixo das árvores do Campo das Princesas repousei do cansaço, impregnado pelas fantasias do poeta.
Tempos depois repetia o passeio pelas páginas de “O Moleque Ricardo”, de José Lins do Rego, igualmente sendo purificado pelos poemas de João Cabral de Melo Neto, Ascênsio Ferreira e Mauro Mota que busquei como acalento. Todavia Bandeira e Zé Lins mostraram-me becos poéticos, bem mais íntimos do que a poesia de Augusto dos Anjos, que ainda tento decifrar para melhor sentir e viver na paisagem da comprida Ponte Buarque de Macedo, com sua alma e seus arredores.
Recife é um lugar agitado que me atormenta, talvez por isso poucas vezes tenha ido até lá, preferindo passear pelas crônicas de Gilberto Freyre e Edson Nery da Fonseca. Caminho pela poesia de Bandeira, tão cheia de lirismo e beleza estética, porque me atrai com o cheiro de fruta silvestre, de suor feminino exalando das antigas senzalas como também do cheiro da bagaceira das velhas usinas. Isso me basta porque acalma minha ânsia de andar pelas ruas da antiga Veneza Brasileira, porém em contrapartida, essas lembranças levam-me até Serraria, onde plantei sonhos na primavera da minha vida.
Como numa crônica de quase uma década atrás, quando lembrava os quarenta anos da morte deste pernambucano, ou melhor, do seu encantamento, porque os místicos e poetas se encantam para ficar na memória do tempo, agora, mais uma vez, retorno àquela cidade para saborear o cheiro do caju, da goiaba e da laranja-cravo dos antigos quintais das casas que a poesia de Manuel Bandeira nos apresenta.
A poesia de Bandeira nos conduz a essa paisagem do Recife antigo, porque a cidade atual é tão estranha e borrada pela decadência da solidariedade.
Minha identificação com o poeta de “A Cinza das Horas” talvez seja porque carrego a aparência de menino criado entre os canaviais de Serraria, sob a sombra das mangueiras e das bananeiras do sítio onde aprendi a andar com a cabeça abaixada. O lirismo da poesia de Bandeira lembra as brincadeiras de cavalo-de-pau, banhos nos açudes com repetidos canga-pés e caçada de baladeira pelas capoeiras, que revivo com certa nostalgia.
Este poeta fala das amenidades da alma, estabelece fantasias que dão sentido a fatos que parecem ocorridos recentemente, mesmo que o horizonte da infância se distancie. Ler a poesia de Bandeira é conversar sobre a paisagem guardada na memória, mesmo distante no tempo, porque é um poeta que fala daquilo que sentimos.
Na voz deste poeta pernambucano, evocando seu passado tão longe, retornamos às reminiscências de menino; ele com seu Recife antigo e eu, com minha Serraria de saudades.
Volto à leitura da poesia de Manuel Bandeira para reanimar as visões guardadas no canto da memória de um Recife romântico, mesmo preferindo andar pelas páginas do “Moleque Ricardo” de José Lins, pois os cenários são menos metafóricos. Quando o paraibano descreve os encantos dos engenhos da várzea do Rio Paraíba, vejo semelhança às rústicas paisagens da minha terra que hoje eu recolho como o alimento para as canções que improviso.
Após três dias na Itália, eis que chegou a hora de conhecer a Cidade Eterna. Desejo antigo, acumulado ao longo da minha juventude, nos livros escolares, na enciclopédia de meu pai e nos inúmeros filmes italianos a que já havia assistido.
Dou-me ao vinho e à carne aos sábados. Em compensação, gasto os domingos a alimentar o espírito com missa e música, muita música. Coisas de cristão indisciplinado. Num destes recentes, depois de uma homilia sublime em que o sacerdote reproduziu o libelo do apóstolo Paulo ao amor, calhou de cair na vitrola “O Moldava”, parte do comovente poema sinfônico “Minha Pátria”, de Smetana.
Ao ler a série de contos de “Confissões de um Anjo da Guarda” (Bertrand Brasil, 2008), de Carlos Trigueiro, autor de outras obras marcantes, como o “Livro dos Desmandamentos”, “O Clube dos Feios” e o “Livro dos Ciúmes”, voltei a me encantar com seu estilo denso, amargo, enxuto, sarcástico, e a me intrigar com o que acabei percebendo ser um de seus sestros de notável artífice da palavra: o uso recorrente da enumeração como forma de ampliação visual e conceitual dos relatos.
Enumeração:
Tom Jobim
Acho que todo mundo conhece o poema “Isso é aquilo”, do livro “Lição das Coisas”, produto de Drummond já maduro, onde ele se limita a uma longa fila de versos que começa com “o fácil o fóssil / o míssil o físsil” e termina com “O cudelume Ulalume / o zunzum de Zeus / o bômbix / o ptyx”. Cada palavra colocada ali tem uma relação sonora com as demais, porém sempre com outro sentido, provocando, pelo acúmulo, um efeito poético extraordinário.
Em Águas de Março, Jobim segue a mesma trilha:
É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol
É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá candeia, é o Matita-Pereira.
Trigueiro diz, de seu anjo Mahlaliel, que ele se viu obrigado a abrir mão de “trajes, acessórios, espaços, regalias, imagem, invisibilidade, segredos, reputação, poderes, armas e artimanhas”. Mais adiante, especifica: “Recolheram-me asas, vestes, halo, chancas, alabarda, sambuca e aquelas nuvenzinhas precursoras do skate”.
Às vezes Trigueiro me passa a impressão de alguém que faz escrita automática, como a dos surrealistas e dadaístas, ou como o Kubitschek Pinheiro, em suas crônicas paraibanas. Sexo dos anjos? “Hoje tem anjo macho, anjo fêmeo, anjo frígido, anjo esterilizado, anjo siliconado, anjo de programa e os que não estão nem aí para referências sexuais”. A relação dos que Mahlaliel já custodiou?: “profetas, bruxas, rainhas, centuriões, bárbaros, filósofos, diplomatas, reis, conquistadores... e plebeus, bandidos, políticos, jornalistas, desocupados, pintores, músicos, juristas, escritores, grafiteiros, funcionários públicos e os precursores dos blogueiros”.
Para se disparar essa metralha vocabular, há que se ter imaginação fervilhante, claro. O recurso, além de abrir a narrativa para uma infinidade de roteiros colaterais, de repente, noutros pontos, dá a elas uma velocidade frenética. No segundo conto, por exemplo, “Miguel enviou o currículo para agências de empregos, head-hunters, consultorias, seguradoras, financeiras, bancos, imobiliárias. Não obtendo resposta, fez promessas para os santos protetores de negócios, rezou, acendeu velas, jejuou, arquivou a libido”. ]
No conto “Obsessão”, o personagem Peterson, que é engenheiro, “se sentia realizado em canteiros de obras, regendo conjunto de bate-estacas, gruas, serras, tornos, empilhadeiras, soldadoras, e sentindo cheiro de cimento, argamassa, cola, tinta, suor de operários, lidando com mestres-de-obras mais sabidos do que mestres”. Essa ironia, machadiana, é exemplar em “O Jornalista”:
“O Mercado é sensível a corrente de ar, vírus de computador, boatos, enchentes, manchetes de jornais, licitação públicas, escutas telefônicas, prêmio de loteria acumulado, horóscopo...”
Numa conversa a respeito de “Confissões de um Anjo da Guarda” que tive com o professor de literatura brasileira da UFPB – poeta Sérgio de Castro Pinto – perguntei-lhe o que lhe lembrava esta declaração do Carlos Trigueiro na estória “Clínica para Normais”:
“A distância custou-lhe vinte e oito libras, três quartos de hora e meia dose de paciência”.
- Ora, Machado de Assis no capítulo XVII do “Memórias Póstumas de Brás Cubas”:
“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”.
Machadiano. Carlos Trigueiro é machadiano, claro. Observe estes trechos do capítulo XIII de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”:
“... a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las.”
“Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições árduas e longas.”
“Um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que ele sabia, benta palmatória.”
“Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco, capote, lenço na mão, calva à mostras, barba raspada; vejo-te bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição. E fizeste isto durante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da Rua do Piolho.”
A coisa vai longe.
A marca de Carlos Trigueiro, porém, está na exasperação desse expediente. Na forma e no conteúdo. No capítulo 21 do “Livro dos Desmandamentos”, por exemplo, há um parágrafo antológico:
Carlos Trigueiro
“Sob o império dos atos institucionais, qualquer vacilo, deslize ou equívoco no andar, falar, rezar, cantar, escrever, tocar, pensar, respirar podia acabar mal. Um gaguejo podia ser interpretado como linguagem subversiva codificada. Daí, vinte e dois mil, setecentos e quarenta e oito gagos desapareceram sem terminar o que iam dizer. Outra barbaridade sucedera àqueles que, por causa de um tique nervoso, piscaram na hora errada: nove mil, setecentos e setenta e sete ficaram caolhos.”
Veja-se este excerto do capítulo LXVII do mestre fluminense, em “Quincas Borba”:
“Estirado no gabinete, evocou a cena: o menino, o carro, os cavalos, o grito, o salto que deu, levado de um ímpeto irresistível.”
Agora veja ação semelhante, desenvolvida num conto de “Confissões de um Anjo da Guarda” – “Anjos Exterminadores” – cujo título, por evocar uma das obras-primas de Buñuel, trai a influência do cinema nessa exacerbação da técnica machadiana. Aí, “o menor C.P.F., vulgo Papelote, sem anjo da guarda”, sobe, depois desce o morro na mesma carreira de assaltante em fuga, e eu chamo a atenção para a velocidade da cena obtida pela enumeração, o... pinturesco de tudo que nela se menciona, a carga cinematográfica dessa disparada de fotogramas:
“Correu, correu, dobrou, direita, esquerda, correu, correu, subiu a escadaria do morro, subiu, saltou vala, pulou muro, mureta, atalhou daqui, dobrou dali, pulou barranco, bicicleta, macumba, chutou cachorro, lata de lixo, vazou birosca, barraco, derrubou porta, pulou janela, cerca, cercado”, etc, e, na página seguinte, a volta: “correu morro abaixo, saltou vala, valeta, pulou muro, mureta, macumba, despacho, farofa, vela de sete dias, garrafa de cachaça, cachorro, gato preto, pinto no lixo, gaiola de curió, pardal esfomeado, arco de barril, virou ali, acolá, subiu, desceu, atalhou, e correu, correu, correu....”
Genial
Em “Memórias da Liberdade”, criado por Trigueiro no “alvorecer dos anos 1980”, “em Madri”, e que saiu aqui pela 7letras, dei de novo com a técnica da enumeração, tão perfeita quanto antes:
- Passei por coisas, lugares, pessoas. Passei por vivos, mortos e mortos vivos. E fui passando. Passei por matas, águas e glebas. Passei por dunas, desertos, sertões. Passei por campinas, cerrados, montanhas. E fui passando. Passei por tumbas, palácios, pirâmides. Passei por santos, espectros, dragões. Passei por esfinges, aedos, gurus. E fui passando. Passei por nevadas, tormentas, procelas. Passei por nuvens, fumos, poeiras. E fui passando. Passei por legiões brancas, verdes, azuis. Passei por damas, valetes, coringas. Passei. E fui passando.
A enumeração volta na página 136, quando ele fala dos assuntos do Rio, “no último quarto dos anos cinquenta ou limiar dos sessenta:
- Bossa-nova, trocadilhos, Brigitte Bardot, sapato sem meia, aprender violão, rendez-vous, ´cinquenta anos em cinco´, seca no Nordeste, juventude transviada, jogo do bicho, bloco do Bafo da Onça, maconha, Sputnik, vestidos tubinho, rock´n roll, lambreta...
Aí arranjou emprego num sanatório, onde – nova enumeração - “era possível encontrar Napoleão, algum centurião romano, Robin Hood, líderes políticos e sindicais, advogados do diabo, fantasmas perambulantes, pacatos alienados aquém do tempo e além do espaço.(...) Paranóicos, catatônicos, psicópticos, maníacos, alcoólatras, oligofrênicos...”
Trigueiro/Machado. Lembra-me Rafael assumindo a musculatura dos personagens de Miguelângelo e o sfumato de Leonardo. Woody Allen assumindo as encucações de Bergman.
Manet pescando o impressionismo muito antes da hora, de Velásquez.
É assim – mesmo que nada haja de novo debaixo do sol - que tudo vive cheio de novidade.
W. J. Solha é dramaturgo, artista plástico e poeta