Nos primeiros anos do século passado, em um bairro pobre de população predominantemente negra, em Saint Louis, no Missouri, a vida dos mor...

Josephine Baker, espiã, mãe e ativista

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Nos primeiros anos do século passado, em um bairro pobre de população predominantemente negra, em Saint Louis, no Missouri, a vida dos moradores não tinha grandes perspectivas. E seria assim, também, com aquela menina nascida em 1906, filha de pai ausente e de uma mãe que sustentava a família como lavadeira.

A menina, que se chamava Freda Josephine McDonald começou a fazer serviços domésticos aos oito anos de idade, em casas de famílias "brancas". Abandonou a escola aos doze. No ano seguinte, foi trabalhar como garçonete em um clube,
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Josephine Baker
onde conheceu o seu primeiro marido. O casamento durou menos de um ano.

Josephine decidiu ir embora de Saint Louis, acompanhando um teatro itinerante de variedades. Embora tivesse grande habilidade para dançar, foi aproveitada no grupo apenas como camareira, sendo designada como substituta eventual das coristas. Na passagem da companhia por Filadélfia, Josephine voltou a casar. Tinha 15 anos. O casamento durou menos tempo que o anterior. O grupo de teatro se desfez e ela resolveu ir para Nova York, sozinha, mantendo o sobrenome do seu segundo marido.

Ao chegar a Nova York, Josephine, sem conhecer ninguém, dormiu algumas noites em bancos de parques. Acabou aceitando, novamente, o emprego de camareira em uma companhia de teatro, sempre na perspectiva de participar dos espetáculos, em caso de impedimento de alguma corista. Quem poderia imaginar que, com esse começo de vida, aquela garota de 15 anos se tornaria a primeira artista negra a ter projeção mundial e seria, mais tarde, uma das principais personagens da cultura no século 20?

Há 100 anos, quando Josephine Baker desembarcava em Nova York, iniciava-se a chamada Era do Jazz, os “Roaring Twenties”, os “Anos Loucos de 1920”. Para o escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald, aquela “foi uma era de milagres... uma era de arte, uma era de excessos”. Esses anos são considerados como um tempo de rebeldia e de quebra nos padrões de costumes da época, em um ambiente de prosperidade econômica que se seguiu à Primeira Guerra Mundial.


Nos "Roaring Twenties", desenvolveram-se o rádio e a indústria fonográfica, e a música exerceu papel fundamental na nascente cultura de massa. O jazz havia surgido fazia pouco tempo. Em 1917, foi lançada aquela que é considerada a primeira gravação de jazz da história. Os ouvidos acostumados a canções saídas de operetas, cantadas a plenos pulmões pelas vozes tonitruantes de tenores, foram surpreendidos com a agitação daquele novo tipo de música que era tocado pela Original Dixieland Jazz Band.

A animação da música, nos clubes e bares, induzia à dança, predominantemente o charleston. As mulheres mudaram a sua forma de vestir, trocaram os espartilhos e os vestidos longos, por vestidos curtos. Os cabelos passaram, também, a ser curtos, à la garçonne.
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Revista Para Todos, Junho/1926
No Brasil, eram chamadas melindrosas, cujas imagens ficaram registradas nas revistas da época e nos traços dos nossos caricaturistas, como o magistral J. Carlos.

E foi no caldeirão cultural dos “Anos Loucos” que Josephine Baker surgiu como artista em Nova York. Atuando, como corista, em espetáculos no Harlem e no famoso Cotton Club, ela se destacava pelo físico esbelto e longilíneo e, principalmente, por suas improvisações cômicas, o que fez com que recebesse vantajosa proposta para trabalhar em Paris.

Josephine Baker chegou à capital francesa em outubro de 1925. Paris vivia, também, os seus “Anos Loucos”, os Années folles. Para a professora e ensaísta Phyllis Rose, que escreveu uma biografia de Josephine Baker (publicada no Brasil, pela editora Rocco, com o título “A Cleópatra do Jazz”):


“nos anos vinte, o music-hall de Paris estava atingindo sua idade de ouro [...] os cenários eram luxuosos, os figurinos muitas vezes equiparavam-se aos trajes da alta costura, e as apresentações haviam recebido a proveitosa influência do jazz”.

Segundo Phyllis Rose, já no ano seguinte à chegada de Josephine Baker a Paris, o seu sucesso era extraordinário, “foram lançados perfumes, brilhantinas, roupas e bonecas” com a sua marca. Josephine passou a ser chamada de Vênus Negra, Deusa de Ébano e tornou-se a musa de um grupo de artistas que viviam, naquela época, em Paris, dentre eles Ernest Hemingway, Pablo Picasso, Cole Porter, F. Scott Fitzgerald, Le Corbusier e Jean Cocteau.


Josephine destacava-se pelo exotismo de suas apresentações, usando uma minúscula saia feita de bananas e fazendo-se acompanhar, no palco, por um leopardo, a que ela chamava Chiquita. Passou a cantar e abriu sua própria boate, a Chez Josephine. Seu sucesso foi de tal ordem que, dois anos depois que chegara à França, já era a artista mais bem paga da Europa.

Em 1928, no auge da fama, Josephine iniciou uma turnê mundial de dois anos. No ano seguinte, fez a primeira das suas quatro visitas ao Brasil, apresentando-se no Rio de Janeiro e em São Paulo. O cantor Francisco Alves gravou para o carnaval a marchinha “Josephina”, inspirada na artista, e "La Baker", como os franceses a chamavam, foi homenageada com uma suculenta feijoada nos salões da Confeitaria Colombo, no Rio de Janeiro. Em 1937, Josephine abdicou da cidadania norteamericana e adotou a francesa.
Josephine Baker
Quando, na Segunda Guerra Mundial, parte da França foi ocupada pelos alemães e o restante ficou sob um governo colaboracionista, poucos franceses aderiram ao movimento de resistência comandado pelo general Charles De Gaulle (um percentual estimado em apenas 2% da população). Segundo Phyllis Rose, Josephine “se juntou à Resistência desde o início e manteve uma inabalável lealdade a De Gaulle”.

Convidada a participar dos serviços de espionagem, La Baker teria respondido:


“A França fez de mim o que eu sou. Serei grata para sempre. Pode me usar como quiser”.

Josephine, na condição de artista famosa, podia circular e viajar pelos países coletando informações sem despertar suspeitas. Depois de certo tempo atuando como espiã, Josephine foi servir no Norte da África, no posto de subtenente do corpo auxiliar da Força Aérea Francesa.

Após o fim da guerra, por sua atuação durante o conflito, Josephine Baker recebeu a Cruz de Guerra e a Rosette da Resistência Francesa. Em 1957, por decreto do general Charles De Gaulle, presidente da França, tornou-se chevalier da Legião de Honra, a maior distinção honorífica dada pelo país.

Com o estabelecimento da paz, Josephine retomou suas atividades artísticas, ao tempo que iniciava um posicionamento ativo contra a discriminação racial. Segundo a sua biógrafa, Phyllis Rose, para muitos “a verdadeira Josephine começou a existir apenas depois de 1950”. Na época, mesmo com toda a sua fama, em viagem aos Estados Unidos, pelo fato de ser negra e condenar a segregação racial, trinta e seis hotéis do país não aceitaram suas reservas de hospedagem.

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Josephine Baker
Em Nova York, 1951, em decorrência do posicionamento público que tomava contra a segregação, Josephine sofreu discriminação no Stork Club, uma boate chique da cidade. Grace Kelly que, na época, já era atriz famosa e estava presente no local quando do incidente, retirou-se da boate em protesto, acompanhando Josephine. A partir desse episódio, as duas ficaram amigas íntimas.

Em 1952, Josephine Baker esteve no Brasil por um alongado tempo, quase três meses e meio. Estreou no dia 20 de junho, na boate Night and Day, no Rio de Janeiro. A Deusa de Ébano chegou a ser tema de uma marchinha no carnaval de 1949, “Chiquita Bacana”, composta por João de Barro e Alberto Ribeiro, e que a própria Josephine gravou em uma versão em francês com o título “Chiquita Madame”.

Nessa estada no Brasil, Josephine participou do lançamento local da Associação Mundial Contra a Discriminação Racial, realizado na sede da Associação Brasileira de Imprensa-ABI, no Rio, com a presença de defensores dos direitos civis, como Afonso Arinos e Nelson Carneiro, então deputados federais.

Um episódio pitoresco dessa passagem de Josephine Baker pelo Brasil foi relatado por Jean-Claude Baker, um dos filhos de Josephine. Jean-Claude publicou, nos EUA, em 1993, o livro The Hungry Heart, sobre sua mãe. Em 1997, Jean-Claude, em entrevista que deu ao jornal O Globo insinuou que poderia ter ocorrido, em 1952, quando da viagem de Josephine Baker ao Brasil, encontros nada republicanos entre ela e o então presidente brasileiro Getúlio Vargas. Jean-Claude afirma que La Baker teria confessado para ele que “poderia ter sido a Eva Perón do Brasil”.

Nos três volumes da alentada biografia de Getúlio Vargas, feita por Lira Neto, que, inclusive, trata desses “encontros não republicanos” do político gaúcho, não há referência a esse caso. Mas, como Vargas não era nenhum exemplo de castidade e, muito menos, Josephine, o relato de Jean-Claude Baker pode ser considerado verossímil. Até porque a Deusa de Ébano, dizem, tinha certa queda por brasileiros. Conta-se que, entre as suas preferências, estariam o jornalista João Saldanha e Chico Buarque que, quando exilado na Itália, fazia a abertura dos shows de Josephine.

Outro fato que muitos desconhecem é que Josephine Baker, na sua excursão ao Brasil, em 1952, apresentou-se na Paraíba, em João Pessoa e em Campina Grande. Na capital paraibana, o seu show “As Mil e Uma Melodias” aconteceu no Teatro Santa Rosa, na noite do dia 21 de agosto, quinta-feita, com a orquestra do maestro pernambucano Nelson Ferreira, em evento promovido pelo então governador José Américo de Almeida, por meio da Rádio Tabajara. Em Campina Grande, Josephine se apresentou sob o patrocínio da Rádio Borborema, que integrava o poderosíssimo, na época, grupo de comunicação do jornalista paraibano Assis Chateaubriand.

O Norte, 20 de agosto de 1952
Josephine Baker foi, cada vez mais, priorizando suas ações como ativista dos direitos civis. No ano seguinte, em Buenos Aires, ela declarou que “os EUA não são um país livre [...] eles tratam os negros como se fossem cães”. Nos Estados Unidos, vivia-se a época do macarthismo. Escritores, atores e artistas que se manifestavam a favor dos direitos civis eram taxados de comunistas e até proibidos de exercer as suas atividades.

Ao tomar conhecimento de que o Departamento de Justiça teria aberto um processo contra ela, com a perspectiva de proibir a sua entrada no país, Josephine declarou aos jornais:


“o governo norte-americano agiu, a meu respeito, como já o fez com um grande ator, que me sinto orgulhosa em citar: Charles Chaplin. É acusado de comunismo porque, também ele, luta pela igualdade dos seres humanos”.

Outra faceta de Josephine foi a de ser mãe adotiva de várias crianças. Impossibilitada de ter filhos, em consequência de abortos que fizera na juventude, ela resolveu adotar um grupo de crianças de etnias e credos diferentes, que ela chamava Tribo do Arco-Íris. Abandonou a carreira para poder cuidar dos seus filhos em sua propriedade, Château des Millandes, no Departamento de Dordogne, sudoeste da França.


Dificuldades para sustentar a crescente família forçaram-na, logo depois, a reativar a carreira, voltando a se apresentar em shows, mas sem abandonar o seu ativismo. Em 1963, Josephine foi a única mulher a discursar na Marcha sobre Washington, liderada pelo pastor Martin Luther King, contra o fim da segregação racial. Na ocasião, ela relembrou a discriminação que sofrera nos Estados Unidos:

“I have walked into the palaces of kings and queens and into the houses of presidents. And much more. But I could not walk into a hotel in America and get a cup of coffee, and that made me mad”.
“Entrei nos palácios de reis e rainhas e nas casas de presidentes. E muito mais. Mas não podia entrar em um hotel nos Estados Unidos e tomar um café, e isso me deixava furiosa”.

Após o assassinato de Luther King, a sua esposa, Coretta Scott King, pediu a Josephine que substituísse o reverendo morto na liderança do Movimento pelos Direitos Civis. A proposta foi recusada por Josephine, em razão da pouca idade dos seus filhos, que requeriam a sua presença na França.

Em 1969, dificuldades financeiras levaram Josephine a perder a propriedade em que residia, na França. Na ocasião, ela foi ajudada por sua amiga Grace Kelly, a atriz abandonara a vida artística para se tornar a princesa de Mônaco, onde Josephine passou a morar.

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Príncipe Rainier III, Josephine Baker e Grace Kelly, 1975
Em 1975, o príncipe do Mônaco, Rainier III, patrocinou a montagem de um show em que Josephine comemoraria, em Paris, 50 anos de carreira. A estreia do espetáculo contou com a presença de Sophia Loren, Liza Minelli, Shirley Bassey, Diana Ross e Mick Jagger, entre outras personalidades do show business. Três dias depois da estreia, Josephine Baker foi encontrada desacordada, em sua casa, deitada na cama, segurando jornais do dia, que relatavam o sucesso do seu espetáculo. Havia sofrido uma hemorragia cerebral. A Vênus Negra faleceu aos 68 anos. Na narrativa de Phyllis Rose:


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“A cerimônia de seu enterro foi televisionada em rede nacional e se revestiu de uma importância quase inaudita para uma artista. O esquife foi conduzindo lentamente [...] até a igreja da Madeleine, onde Napoleão fora coroado como imperador. Vinte mil pessoas lotavam as ruas próximas à igreja, espalhando-se até quase a Place de la Concorde. Muitos dos dignitários e das celebridades que compareceram à sua estreia três dias antes estavam ali novamente para o funeral [...] O ataúde coberto pela bandeira francesa passou entre uma guarda de honra de vinte e quatro bandeiras, seguindo o ritual dos veteranos do exército francês”


Flávio Ramalho de Brito é engenheiro e articulista

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  1. Maramilhoso texto!!! Flavio Ramalho de Brito...que nos fez conhecer a história de uma personagem que lutou em várias frentes!!!
    Paulo Roberto Rocha

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  2. Mais uma incrível história de uma personagem pouco conhecida, que vem à luz pelas mãos hábeis de Flávio Brito. Texto leve, porém rico em pesquisa e informações.
    Parabens, Flávio!
    José Mário Espínola

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  3. Muito interessante. Gratidão por tanta riqueza de detalhes.

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