Sabedores que desde a juventude sou apreciador de um bom vinho, meus amigos durante regresso de viagem à França, sempre me contavam históri...

Os vinhedos da Borgonha

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Sabedores que desde a juventude sou apreciador de um bom vinho, meus amigos durante regresso de viagem à França, sempre me contavam histórias sobre os famosos vinhos da região de Bordeaux.

Entretanto, escrevi no meu mais recente livro “A saga do chanceler Rolin e seus descendentes”, um capítulo sobre os vinhedos da região da Borgonha, grandes rivais dos vinhos de Bordeaux. Esse livro começará a ser distribuído pela editora paulista Labrador nas principais livrarias brasileiras, a partir do fim da primeira quinzena deste mês de novembro.

É o resultado de uma pesquisa que realizei in loco na região da Borgonha localizada ao sul da França contando a história de um personagem famoso que nasceu no século XIV, um chanceler de nome Nicolas Rolin que havia vivido na cidade de Autun, nessa região. Era muito influente, foi representante do duque da Borgonha João sem Medo, no Parlamento de Paris e posteriormente chanceler nomeado por seu filho Felipe o Bom, sucessor do trono ducal. Ocupou essa posição por cerca de quarenta anos, acumulando grande fortuna. Foi ainda o mentor do Tratado de Arras, que pôs fim à Guerra dos Cem Anos. Além de tudo, foi o idealizador juntamente com sua esposa Guigone de Salins, da construção do Hôtel Dieu ou Hospices de Beaune, um hospital público para atendimento a pobres e desvalidos e também, aos vitimados da Guerra dos Cem Anos. Esse hospital foi declarado monumento histórico em 1862 e hoje é um museu famoso. Nicolas Rolin ficou imortalizado pelo quadro que mandou pintar por Jan van Eyck, concluído entre 1430 e 1435, intitulado A Virgem e o Menino com o Chanceler Rolin. O próprio Nicolas Rolin foi retratado nessa pintura ao lado da Virgem Maria e do Menino Jesus. Essa obra encontra-se em exposição permanente no Museu do Louvre em Paris.

A primeira evidência escrita da presença de vinhedos perto de Beaune, onde Nicolas Rolin construiu o referido hospital, apareceu no ano 312. O imperador Constantino recebeu dos habitantes de Autun, cidade onde nasceu o chanceler, uma reclamação em forma de petição, detalhando as más condições dos vinhedos da cidade e solicitando impostos mais baixos. Mais tarde, em 630, o duque da Borgonha concedeu à abadia de Bèze uma grande área de terras em Gevrey-Chambertin, que se tornaria o vinhedo Chambertin-Clos de Bèze, nome que continua até hoje. Nesse período, foram lançadas as bases para que os monges viticultores posteriormente limpassem a terra e marcassem os limites dos futuros vinhos “Grand Crus” da Côte de Beaune.

Em 1395, um decreto de Filipe II, conhecido como Filipe, o Ousado, duque da Borgonha, ordenou que os vinhos fabricados com a uva do tipo gamay, descritos por ele como “cepas inferiores”, fossem retirados de fabricação e que a cepa pinot noir, que produzia uma uva mais refinada, fosse plantada em seu lugar. E foi assim que surgiu a fama da Borgonha como produtora de vinhos tintos de excelente qualidade.

“Cru” significa literalmente “vinhedo”, de modo que “Premier Cru” é um vinhedo de destaque, algo muito especial na Borgonha, e o “Grand Cru” ainda mais importante. Já a categoria “Cru Classé” significa “vinhedo classificado”. Os vinhos da Borgonha são classificados em função das porcentagens de sua produção em cinco categorias: “Grand Cru” (0,8%); “Premier Cru” (5,2%); Denominação de Origem Controlada (DOC) comunitário (30%) e DOC regional (64%).

A composição do solo nessa região onde são produzidos os excelentes vinhos da cepa pinot noir é composta principalmente de sílica, argila, gesso e óxido de ferro. A Côte de Beaune está situada a uma altitude que varia entre 250 a 300 metros e localizada de frente para o sudeste e para o leste, respectivamente, obtendo a luz completa do sol da manhã, fator deveras importante nessa latitude.

No começo da metade do século XV, considerava-se que o vinho da região tinha qualidades nutritivas e médicas e o vinho branco era usado como antisséptico. As poucas videiras existentes nos terrenos pertencentes aos Hospices de Beaune, fundado em 1451, eram mais que suficientes para a produção de vinho que necessitavam para esses fins. Foi assim que os Hospices começaram a vender o vinho excedente, graças a permissões específicas que Nicolas Rolin adquiriu.

Os vinhos do hospital eram vendidos como entidade privada até 1794. A primeira venda em leilão ocorreu em 23 de março de 1795, após o hospital ser municipalizado por meio de um decreto do distrito de Beaune. Somente no ano de 1926 foi decidido que o terceiro domingo de novembro se tornaria a data oficial do leilão. Atualmente, setenta por cento das compras são realizadas por negociantes da Europa, mas há também compradores asiáticos e americanos. Hoje, o leilão não é apenas um grande evento de celebridades, mas também um importante termômetro para o mercado de vinhos. Organizado pela empresa de leilões Christie’s, é o mais célebre evento de caridade no mundo.

Em anos comuns, são comercializados atualmente nos Hospices de Beaune uma magnífica variedade de 46 tipos de vinho DOC (Denominação de Origem Controlada), 33 tintos e 13 brancos, cada um mais prestigiado que o outro, produzidos a partir das colheitas de setembro. Fazem parte desse grupo marcas famosas, como Pommard, Volnay, Corton e Clos de la Roche. Todos esses lotes são facilmente identificáveis como produções dos Hospices graças à presença em seu rótulo do nome do vinho e das armas do casal fundador, Nicolas Rolin e Guigone de Salins: três chaves e uma torre. Os climas dos vinhedos da Borgonha estão na lista do Patrimônio Mundial da Unesco desde 2015.

Atualmente, o domínio vinícola dos Hospices de Beaune soma 60 hectares, dos quais dez são dedicados às cepas chardonnay (vinho branco), e cinquenta são consagrados às cepas pinot noir, uma uva tinta originária da Borgonha que se tornou muito solicitada no mundo do vinho. Enquanto algumas uvas, como a cabernet sauvignon, são confiáveis, a pinot noir é muito variável. Quando boa, é deliciosa, embora seja frágil e muito mais leve que a cabernert sauvignon. Suas cascas são bem mais finas, de modo que ficam mais suscetíveis a podridão e a doenças, e os vinhos delas resultantes são mais claros e, com frequência, menos tânicos ou encorpados.

Devido a seus aromas extremamente complexos, torna-se difícil o plantio de pinot noir em regiões fora da Borgonha – o Chile, que produz atualmente vinhos excelentes com essa uva, é uma exceção. Trata-se de fato de uma cepa muito frágil, geneticamente instável, com forte tendência a mutações e a degeneração.

O valor total arrecadado pelo leilão varia de 2 milhões a quase 5 milhões de euros em anos excepcionais. Essas grandes somas não são usadas para despesas diárias nos Hospices de Beaune, mas para financiar grandes investimentos, como a compra de equipamentos médicos de última geração para o novo hospital e a modernização dos edifícios, além da conservação do museu do Hôtel-Dieu.

Quando se trata de vinhos, as regiões da Borgonha e de Bordeaux são frequentemente apresentadas como grandes rivais. Na realidade, pouco têm em comum. Os vinhedos de Bordeaux são 2,5 vezes maiores que os da Borgonha, incluindo Beaujolais. Por outro lado, a Borgonha produz quase duas vezes mais vinhos DOC do que Bordeaux (são 98 na Borgonha, Beaujolais não incluído, e 57 em Bordeaux). Na Borgonha existem 4,9 mil propriedades, 115 lojas comerciais e 19 cooperativas com adegas - 61% do vinho produzido é branco e 39% são vinhos tintos. Os “Grand Crus” representam 2% da produção de vinho com 75% pertencente à famílias de viticultores locais e 23% a comerciantes de vinhos.

Se alguém perguntar se prefiro o vinho Bordeaux ou o vinho da cepa pinot noir da Borgonha, é claro que prefiro o segundo, devido à influência e às recomendações de meu ancestral mais famoso, o chanceler Nicolas Rolin.


Sérgio Rolim Mendonça é Engenheiro Sanitarista e Ambiental

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  1. Tive o privilégio de conhecer Beaune e a região da Borgonha. Lugares maravilhosos, com muitas abadias. Destaque para o Museu do Vinho.
    Excelente texto contando história maravilhosa do seu antepassado nobre, Ségio.
    Parabens!

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  2. Parabéns👏🏻👏🏻👏🏻 Sergio Rolim Mendonça... brilhante texto!!verdadeiramente didático!!!
    Paulo Roberto Rocha

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  3. Anônimo8/3/24 09:14

    Sou um Borgonho
    Mas fiquei sabendo da historia de meus antepassados com muita allegria
    É uma viagem em nossas raízes
    Mas sou de família umilde
    Nem se comparara a história de um duque
    Ou parte de uma realeza
    Ou da categoria de vinhos caros

    Muito obrigado pela história

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