Morrer é verbo depoente em latim. Isto significa que o verbo apresenta uma forma passiva, mas com um sentido ativo. Assim, “mŏrĭor”, prime...

Preparemo-nos!

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Morrer é verbo depoente em latim. Isto significa que o verbo apresenta uma forma passiva, mas com um sentido ativo. Assim, “mŏrĭor”, primeira pessoa do indicativo infectum de “mŏrī”, “morrer”, não é “eu morro”, embora traduzamos e digamos assim, mas é qualquer coisa como “algo me faz morrer”. Na realidade, ninguém morre, a não ser que provoque deliberadamente a sua morte. É sempre "algo" que nos leva a morrer. Tanto é que o atestado de óbito deve sempre deixar claro qual foi a causa mortis.

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Em português, morrer é um verbo intransitivo, encerrando nele mesmo o seu sentido, que jamais transita além dele, prescindindo de um complemento. Tal é o que vemos quando decompomos a palavra “intransitivo”: in (negação) + trans (através, além) + o verbo latino īrĕ, “ir”. Todas as perguntas que fazemos, decorrentes de uma morte, são circunstâncias — quando, como, por quê, com quem, onde... —, seja por um sentimento de curiosidade, seja porque, inconscientemente as perguntas nos aliviam o espírito, diante do inevitável, diante do incômodo que a morte nos traz.

Ficamos incomodados pelo fato de que não estamos preparados para enfrentar a morte, sequer pensamos nela, vivemos como se fôssemos eternos e ela fosse uma surpresa. Ora, na sua perspicácia de poeta e na aprendizagem do que é a convivência com a morte, Manuel Bandeira, no poema “Consoada” (Opus 10), nos revela um eu-poético preparado para recebê-la, com uma ceia familiar — significado do título do poema — e ainda nos brinda com dois epítetos que a definem muito bem, porque a completam: “Indesejada das gentes” e “Iniludível”. Esta síntese eufêmico-irônica é magnífica e só a concebe quem estiver preparado para recebê-la, depois de “lavrado o campo, a casa limpa, / A mesa posta, / Com cada coisa em seu lugar”. Enfim, não a desejamos, necessariamente, mas não podemos iludi-la.

A lição que Bandeira nos oferece em poesia é a transfiguração de uma realidade que nos escapa. Como desejamos saber cada vez mais sobre o corpo, as necessidades puramente materiais nos dominam ao ponto de nos entulhar de lixo e de falsas necessidades de que temos séria dificuldade de nos livrar.
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Em lugar de lavrar o campo, deixamos que as ervas daninhas do egoísmo, os espinhos da inveja e as pedras do orgulho o invadam; em lugar de limpar a casa, passamos, de maneira muitas vezes mórbida, a juntar sistematicamente um lixo de cuja perniciosidade não nos damos conta; a mesa posta é substituída pela solidão e individualidade dos pratos e talheres sujos, que se amontoam, mas nada dizem do que deveriam traduzir: um convite à convivência e à familiaridade. Definitivamente, as coisas não podem estar em seus lugares, com tamanho desalinho que o apego à materialidade provoca.

E o desalinho está estampado em todos nós, no que dizemos e no que fazemos. Tenho acompanhado a reação das pessoas sobre as mortes provocadas neste momento de pandemia. Muitos afirmam crer em Deus, muitos se dizem cristãos, até criticam, numa atitude nada cristã, o cristianismo alheio, situação clássica da trave e do argueiro. Quando a morte acontece, no entanto, a crença em Deus ou a decantada prática cristã desaparecem, fazendo surgir, nas palavras ditas, ressentimentos e mágoas profundas. Precisamos nos definir e entender que a vida pressupõe a morte. São faces da mesma moeda, que é a aprendizagem da existência. Nascemos para morrer, cedo, tarde, de causa natural ou de doença, de acidente ou de morte matada, como diz a sabedoria popular. Todos morreremos um dia. A morte é condição sine qua non. É iniludível, incontornável. Como diria o poeta Augusto dos Anjos:“É a alfândega, onde toda a vida orgânica / Há de pagar um dia o último imposto!” (“Os Doentes”, versos 116-117).

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Isto quer dizer que a morte não deve nos incomodar? Não, em absoluto. O pesar é necessário, porque sentiremos a falta de quem morreu. Mas reagir de maneira ressentida é uma demonstração de falta de piedade, em relação àquele que partiu. A piedade é necessária e deve se traduzir em preces e orações, não em raiva, mágoa ou invectivas contra a ordem natural das coisas. O problema é que estamos doentes, como mostra o poeta do Pau d'Arco, caminhando a passos largos para a degradação e esperando que a frágil camada de espiritualidade que pretendemos ter se transforme em armadura protetora contra o que nós mesmos semeamos, em campo bruto e nunca mondado.

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Não só não nos preparamos para a morte, como usamos o corpo de forma danosa e ainda nos surpreendemos diante das consequências. Para Platão, se a alguns incomoda a doutrina espírita, o corpo só tem uma utilidade, conforme vemos no Fédon, a de ser usado como instrumento para a aprendizagem da alma. É em confronto com a materialidade e nela vendo-se presa, que a alma procura a sua libertação, fazendo o serviço de lavrar o campo, preparando-se para evoluir. Essa consciência se adquire lentamente, com um labor cotidiano, que nos ensina sermos todos responsáveis, de nada adiantando imputar essa responsabilidade a outrem. Fazer isso é estacionar numa obstinação sem sentido. Quando olhamos apenas para o geral, esquecemos da particularidade e somos tentados a nos excluir do processo de aprendizagem, porque desprezamos as pequenas mudanças, que começam em nós próprios, seduzidos pelas grandes transformações que estão além de nossa alçada.

Esta pandemia que vivemos parece nos dizer, na pequenez invisível do vírus, que temos de dar atenção às pequenas ações e nos unir em torno dela. Resmungar, estrugir, vociferar, gritar e espernear não vai mudar a realidade, muito menos nos mudar. Preparemo-nos!

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  1. COMUNHÃO

    Extraordinário texto. Banquete de reflexões e ensinamentos. Resignação percuciente. Sumo em contemplação, fé e esperança. Ceia larga!
    Astenio Cesar Fernandes

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  2. Obrigado, Dr. Astenio, pela leitura e pelo comentário!

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