Quem, dentre os parnasianos, cumpriu à risca o conteúdo programático do Parnasianismo? Quem, dentre os simbolistas, românticos, modernista...

Anotações sobre a poesia de Rodrigues de Carvalho

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Quem, dentre os parnasianos, cumpriu à risca o conteúdo programático do Parnasianismo? Quem, dentre os simbolistas, românticos, modernistas etc., se confinou nos limites dessas correntes literárias? Aqui, cabe a pergunta: o parnasiano foi apenas parnasiano e o modernista apenas modernista?

Alguns poetas nem sempre se submetem passivamente ao espaço claustrofóbico das periodizações literárias, mas, antes, procuram extrapolá-lo para dar vazão ao ecletismo do qual Mário de Andrade fez profissão de fé: “Eu sou trezentos, trezentos-e-cinquenta...”

No entanto, há os que tentam, a todo custo, ser fiéis ao breviário estético de uma corrente literária. E embora tentem e sejam pertinazes nessa tarefa, findam por malograr. Aliás, um dos equívocos de alguns
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realistas foi desejar ser mais realistas do que a própria realidade. Ou, na esteira de Machado de Assis, acreditarem que a perfeição somente seria conquistada no dia em que discernissem “(...) o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha”.

Quem assim procede, transforma-se numa mera referência de um dado movimento, a exemplo de Júlio Ribeiro, espécie de paradigma do Naturalismo, donde mais uma vez me socorro de Mário de Andrade: “O poeta parnasiano era mais poeta quanto menos parnasiano fosse”, ao tempo em que considero que essa boutade do autor de “Macunaíma”, embora utilizada para alguns poetas de um determinado período da lírica brasileira, pode se desdobrar e servir de carapuça para poetas de todos os períodos literários.

Apesar de ter falecido precocemente, Álvares de Azevedo foi, entre os românticos, o que mais possuía conhecimento da teoria poética. E tanto foi assim que, aliando consciência do ofício e intuição, chegou à conclusão de que o repertório romântico estava exaurido, não lhe restando outra saída senão encordoar, com o diapasão da ironia, do humor, um discurso galhofeiro e escatológico sobre temas até pouco tempo caros ao Romantismo. Que o diga “O Poeta moribundo”, cujos versos, articulados no plano da paródia e da metalinguagem, “podem significar a crise de um estilo poético, mas não (...) o fim da possibilidade de fazer poesia”:

“Poetas! Amanhã ao meu cadáver Minha tripa cortai mais sonorosa! ... Façam dela uma corda, e cantem nela Os amores da vida esperançosa”.

Portanto, o órgão vital do corpo humano, e até então tema vitalício e nobre do Romantismo, o coração, fora substituído pela tripa, mas uma tripa sonorosa para não dizer flatulenta.

É verdade que, na bolsa de valores da literatura, o coração ora está em alta, ora em baixa, tanto que, tempos depois, Coelho Neto o reabilita e o repõe na pole position, no mais alto do pódio, quando, referindo-se aos sentimentos maternos, escreve: “(...) Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração”, ao que o compositor Caetano Veloso, em pleno Tropicalismo, e debochadamente, acrescentou: “(...) Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração...
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dos filhos”. Posteriormente, na segunda fase do Modernismo, Drummond propaga: “Eu tenho um coração maior que o mundo!”

Tempos depois, como para comprovar a teoria da carnavalização de Bahktin, Mario Quintana desentroniza o coração e o trata de modo nada convencional, na medida em que lhe retira a aura e o reifica, convertendo-o numa bola de borracha da qual o eu lírico faz gato e sapato: “Eu faço versos como os saltimbancos/ Desconjuntam os ossos doloridos./A entrada é livre para os conhecidos.../Sentai, Amadas, nos primeiros bancos.// Vão começar as convulsões e arrancos/ Sobre os velhos tapetes estendidos.../Olhai o coração que entre gemidos/ Giro na ponta dos meus dedos brancos!// ‘Meu Deus! Mas tu não mudas o programa!’/ Protesta a clara voz das Bem-Amadas./‘Que tédio!’ o coro das Amigas clama./‘Mas que vos dar de novo e de imprevisto?’/Digo... E reforço as pobres mãos cansadas:‘Eu sei chorar... Eu sei sofrer... Só isto!’”

Em “Longe daqui, aqui mesmo – a poética de Mario Quintana” escrevi: “(...) Convém ressaltar que o início do “Soneto X” possui alguma semelhança com “Desencanto”, de Manuel Bandeira, embora, diferentemente do vate pernambucano, o poeta gaúcho não imprima à sua dicção nenhum tom de recato ou de pudor para expressar os sentimentos do eu lírico. Antes, os torna público num espetáculo pirotécnico onde “A ausência de um estilo, ao qual já não se adere intimamente (...) beira a paródia”.

E continuava: “(...) reservando ao coração o papel de mero figurante de um melodrama digno de um circo mambembe, Mario Quintana o destitui da condição de tema objeto da reverência e do respeito de todos quantos o exploraram como filão poético, sobretudo no Romantismo”.

Anteriormente, citei Manuel Bandeira, mais moço do que José Rodrigues de Carvalho exatamente nove anos. Contudo, apesar da diferença de idade entre um e outro, ambos se situam num contexto literário em que, pelo menos para alguns poetas,
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as fronteiras ou os limites entre Romantismo, Parnasianismo e Simbolismo se mostravam bastante tênues. Que o diga “A Cinza das Horas”, livro em que poemas de extração parnaso-simbolista convivem com outros de feição romântica, quase não existindo a prevalência de um estilo sobre o outro, mas uma espécie de mescla, de “sincretismo poético integral”, para utilizar de uma expressão cara ao saudoso poeta pernambucano Audálio Alves.

Pois bem. José Rodrigues de Carvalho, ou Rodrigues de Carvalho, o Homem Gordo do Tauá, incorporou a mescla de estilos vigentes no final do século XIX e início do Século XX, o que não passou despercebido para o poeta, ensaísta, cronista e crítico literário Hildeberto Barbosa Filho, em matéria publicada no jornal “A União”, em 2016:

“Sua poesia, a par da técnica parnasiana na quadratura do verso, é, no fundo, romântica. O lirismo amoroso, sentimental e melancólico, vezes de tom elegíaco, coexiste com o bucolismo do Tauá, fincada no Sopé da Serra da Borborema, acostado aos brejais úmidos de Alagoinha”.

Tributário do Romantismo, Rodrigues de Carvalho não só tematiza o coração como também empresta a um dos seus livros o título “O Coração”, dividindo-o nas seções “O Coração de um poeta”, “O Coração de uma donzela”, “Um Coração de noiva”, “O Coração de uma Messalina”, “O Coração de um condenado”, “O Coração de uma monja”, “O Coração de uma criança” e “Um Coração de mãe”.

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Na primeira seção, de caráter metalinguístico, se o eu lírico adota inicialmente uma das características do período clássico, qual seja a de estabelecer uma relação concorde e simétrica entre estados d’alma e da natureza – “(...) O poeta é o nenuphar, a branca flor do lago!” –, logo a seguir essa relação é cindida – “(...) Brilhante como o sol, depois sinistro e baço, / o ferro retalhava aquele ser dormente...” – para dar vez a um amargo e profundo sentimento de finitude diante do universo perene – comportamento essencialmente romântica –, pois, afinal, “A arte é longa e a vida é breve...”

Por outro lado, estribando-se nos versos “Nasci, sofri, morri”, Rodrigues de Carvalho corrobora um conceito ainda hoje corrente e recorrente: “(...) o poeta só é grande se sofrer”, para lembrar um verso famoso de uma das canções de Vinícius de Moraes. Com efeito, a existência da maioria dos poetas românticos parece confirmar o princípio segundo o qual ao estilo romântico correspondeu um estilo de vida também romântico, o que vale dizer: dionisíaco, boêmio. Tal não sucedeu com Rodrigues de Carvalho, cuja vida mansa, morigerada, lhe propiciou a sobriedade e o tempo necessários para ser o poeta, o folclorista, o jurista, enfim, o polígrafo que ele o foi.

No poema “Um Coração de mãe”, um dos versos evoca o Coelho Neto de “Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração”: “Oh! Basta, não magoes a fibra dolorida...” Mas a par do Rodrigues de Carvalho de concepção romântica,
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existe o parnasiano que, certamente, procurou evitar as efusões líricas, sentimentais, a sangria desatada das emoções, embora, aqui e acolá, ele cultivasse as flores da retórica no canteiro de sua poesia... E as espargisse abundantemente com o orvalho da inspiração.

Gordos e magros. É assim que José Lins do Rego distingue dois tipos de escritores num livro que desde há muito já faz por merecer uma urgente reedição: “Gordos e Magros”. João Cabral de Melo Neto, “o poeta do menos”, certamente enquadrar-se-ia entre os magros, já mesmo em função de sua linguagem substantiva, sem adiposidades, diferente do gordo e bem nutrido Augusto Frederico Schmidt, de versos longos, discursivos, grandiloquentes, versos marcados por uma acentuação ostensivamente bíblica. Já Graciliano, este iria compor o time dos magros, pois escreve com o seu sobrenome, ou seja, com ramos, mas ramos... secos. Outros, contudo, passam a impressão, pelo menos numa primeira leitura, de serem gordos, diria quase obesos. Exemplos? Whitman e Álvaro de Campos, este um dos heterônimos de Fernando Pessoa, que muito se abeberou do estilo do autor de “Folhas de Relva”. Pois bem. Na obra de Whitman ou de Álvaro de Campos, o gordo e o magro convivem harmoniosamente, ocupam um mesmo espaço, sem que um tome o lugar do outro. Diria mais: se complementam como o Magro Stan Laurel e o Gordo Oliver Hardy, conforme procurei fazer ver no poema “de como o magro é continuação do gordo”, do meu livro “A Ilha na ostra”, de 1970, Edições Sanhauá, com capa de Flávio Tavares: “o magro/ no gordo existe/ como uma roupa/ existe no cabide.// o magro/ se ajusta ao gordo/ como uma roupa/ se ajusta ao corpo.// o magro/ existe no gordo/ como em ambos/ existe/ o chapéu coco.// do gordo é o magro/ continuação intensa: um ponto dentro/ de uma circunferência”.

Quanto a Rodrigues de Carvalho, creio que o seu apelido é eloquente e sintomático, fala por si mesmo: o Homem Gordo do Tauá. Ou o Homem Gordo da Poesia, se for corroborar a engenhosa distinção do roliço José Lins do Rego, autor de “Fogo morto”, uma das obras primas da ficção nacional.

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  1. Salvas à Sergio de Castro Pinto pelo seu "gostoso texto".
    Adorei👏👏👏👏
    Parabéns👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏E ..sempre enaltecendo a sensibilidade literária de Germano Romero ..na brilhante seleção que faz de suas edições.
    Paulo Roberto Rocha

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