O menino nascido no ano de 1921, em Carnaíba, pequeno município da região do Pajeú , em Pernambuco, gostava de passarinhos e de ouvir ...

Ele era o Sertão

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O menino nascido no ano de 1921, em Carnaíba, pequeno município da região do Pajeú, em Pernambuco, gostava de passarinhos e de ouvir histórias do sertão, contadas por Lulu das Braúnas, Salustiano, o velho Clemente e Miguel Vaqueiro, tipos humildes com quem conviveu na sua infância e cuja lembrança ele carregaria pela vida afora. Depois dos primeiros estudos feitos em Carnaíba, o filho de Zeca Dantas, comerciante, fazendeiro e ex-prefeito do município, teria que ir estudar na Capital, para ser “dotô”.

Gov.PE
Em Recife, José de Souza Dantas Filho estudou em tradicionais colégios da cidade. O escritor Mário Souto Maior, seu colega no Marista, contava que ele, na época, já vivia batucando em caixinha de fósforos, improvisando trovas e inventando músicas pelos corredores da instituição. No Colégio Americano Batista, passou a escrever, numa revista da escola, pequenas crônicas sobre coisas e fatos daquele sertão do Pajeú que ele nunca esquecia.

Decidido a ser médico, José Dantas ingressou na Faculdade de Medicina do Recife. Àquela altura, já era bastante conhecido na cidade como um grande improvisador de versos e contador de causos que falavam das coisas do sertão. As atividades acadêmicas na Faculdade de Medicina eram conciliadas com incursões noturnas na vida boêmia do Recife, nas quais, em várias ocasiões, era acompanhado por um colega de turma que tinha a sua idade, o paraibano Raiff Sobreira Ramalho [tio do autor deste texto], que, anos depois, se tornaria destacado médico pediatra na cidade de Campina Grande.

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Raiff Sobreira Ramalho (1921—1976) ▪ Diário de Pernambuco, 2 de dezembro de 1949
Na volta de umas férias passadas no Pajeú, no quarto da pensão em que morava no Recife, pensando nos forrós que aconteciam nas casas simples dos sítios da sua terra, o acadêmico de medicina, que todos chamavam de Zé Dantas, compôs uma música, a que deu o nome de “Resfolego da Sanfona”. Dias depois, em uma noitada na praia do Pina, cantou a canção para dois amigos. Segundo o próprio Zé Dantas, um dos seus companheiros naquela noite teria dito: “Zé, essa música ainda vai dar o que falar [...] não tem nada parecido”.

Naquele tempo, o pernambucano Luiz Gonzaga, que estourava nas rádios com seus baiões, xotes e xaxados, foi ao Recife para fazer algumas apresentações. Contaram para Gonzaga que havia um compositor na cidade que ele precisava conhecer. Marcaram um encontro no Grande Hotel, no Cais de Santa Rita, onde o Rei do Baião estava hospedado. No bar do hotel, Zé Dantas ficou bebendo com amigos, esperando que Gonzaga retornasse de uma apresentação noturna. Segundo relato do compositor, quando Luiz Gonzaga chegou, dirigiu-se ao bar do hotel e perguntou: “Quem é o doutor Zé Dantas?”. Feitas as apresentações, Dantas começou a mostrar algumas músicas a Gonzaga, entre elas “Acauã”, “Forró de Mané Vito”, “A volta da Asa Branca” e “Resfolego da Sanfona”.

Grande Hotel ▪ Recife ▪ 1940s ▪ Fonte: IBGE
Em depoimento dado ao seu primeiro biógrafo, o paraibano Sinval Sá, Luiz Gonzaga afirmou que Zé Dantas cantou: “Acauã vive cantando / Durante o tempo de verão / No silêncio das tardes agourando / Chamando seca pro sertão”. Gonzaga, então, teria dito: "Zé Dantas 'trauteava' a música num ritmo nunca imaginado e com a alma aberta, que a gente parecia estar vendo tudo. Fiquei todo 'arrupiado' – falei pra ele”.

Zé Dantas, em entrevista dada poucos anos depois do ocorrido, afirmou que Luiz Gonzaga, depois de ouvir as músicas, disse: “Vou meter tudo na minha bagagem e gravar no Rio”. Gonzaga relatou, também, que Zé Dantas relutava em ter o seu nome na autoria das composições, temendo reprovações do seu pai, por ele deixar os encargos do curso de medicina para se envolver com “cantorias”.

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Em outubro de 1949, Luiz Gonzaga gravava, em um dos lados de um antigo disco de 78rpm, o “Resfolego da Sanfona”, do ainda acadêmico de medicina Zé Dantas, rebatizado como “Vem Morena”, e com a autoria do baião de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, a dupla que se tornaria, para muitos, a mais admirável das parcerias musicais que foram feitas pelo Rei do Baião.

Em alguns casos, a parceria de Luiz Gonzaga/Zé Dantas funcionou da mesma forma que nos trabalhos de Luiz Gonzaga com Humberto Teixeira, que foi o primeiro grande parceiro do Rei do Baião. Como no caso do “Resfolego da Sanfona”, que virou “Vem Morena”, a letra e a música eram de Zé Dantas, que não era propriamente um músico, e Gonzaga entrou com o arranjo que fez com que aquele baião se tornasse um grande sucesso. Segundo Ruy Castro, assim como ocorreu no caso de Humberto Teixeira, “o arranjo — ‘sanfonização’, como chamavam, era de Gonzaga, o que o torna legitimamente parceiro”.

Ao final do curso de medicina, o boêmio Zé Dantas conheceu a irmã de uma colega de sua turma na Faculdade, que deixara Recife para ensinar em uma pequena vila próxima de Serra Talhada. Começaram a namorar e foi para ela — quando ele deixou Pernambuco para fazer residência médica em obstetrícia no Rio de Janeiro — que ele compôs algumas das suas músicas mais conhecidas como “Sabiá” , “ABC do Sertão” e "A Letra 'I'".

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Zé Dantas e Iolanda ▪ 1950s ▪ Fonte: ForroVinil
No primeiro ano vivendo no Rio, Zé Dantas, que era um exímio contador de causos, assumiu, com Humberto Teixeira, o comando de um programa na Rádio Nacional chamado O Mundo do Baião. Dantas era apresentado, na divulgação do programa, como já tendo “expressivos triunfos em sua bagagem musical”, como “Cintura Fina” , “Dança da Moda”, “Forró de Mané Vito” e “Vem Morena”.

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Zé Dantas e Humberto Teixeira no programa ‘No Mundo do Baião’, da Rádio Nacional ▪ 1950s
Zé Dantas, já casado com Iolanda, radicou-se no Rio de Janeiro, trabalhando como ginecologista em Hospital e com consultório particular, mas, cada vez mais, se dedicando à música. Em 1951, acabou a parceira entre Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira e, então, Zé Dantas assumiu o papel de maior parceiro de Gonzaga. Os dois, ano após ano, vão enfileirando músicas que se tornaram clássicos da canção nordestina: “Imbalança”, “São João na Roça”, “O Xote das Meninas”, “Treze de Dezembro”, “Casamento de Rosa”, “Algodão”, “ABC do Sertão”, “Vozes da Seca”, “Noites Brasileiras”, “Paulo Afonso”, “Riacho do Navio”, “Derramaro o Gái”, “Siri jogando Bola”, “São João Antigo”, “São João no Arraiá” e “Adeus Iracema”.

Zé Dantas compôs, também, sem parceiros, forrós que foram grandes sucessos, gravados por Luiz Gonzaga (“Acauã”, “Forró de Zé Antão”, “Balança a Rede”, “O Delegado no Côco”) e por outros cantores, como Jackson do Pandeiro (“Forró em Caruaru”), Marinês (“Cadê o Peba”) e Ivon Curi (“Farinhada”).
“Farinhada” é uma amostra da inserção das letras escritas por Zé Dantas no ambiente do sertão nordestino:

“Tava na penera / Eu tava penerando / Eu tava no namoro / Eu tava namorando / Na farinhada / Lá na serra do Teixeira / Namorei uma cabocla / Nunca vi tão feiticeira / A meninada / Descascava a macaxeira / Zé Migué no caititu / Eu e ela na penera [...] O vento dava / Sacudia a cabelera / Levantava a saia dela / No balanço da penera / Fechei os óio / E o vento foi soprando / Quando deu um ridimuinho / Sem querer tava espiando [...] De madrugada / Nós fiquemo ali sozinho / O pai dela soube disso / Deu de perna no caminho / Chegando lá / Até riu da brincadeira / Nós tava namorando / Eu e ela na penera / Tava na penera / Eu tava penerando / Eu tava no namoro / Eu tava namorando”

Embora fosse um compositor intuitivo, com uma habilidade inata para a construção de melodias e adaptação de temas recolhidos no sertão, Zé Dantas, com o passar dos anos, tornou-se um estudioso do folclore nordestino, que é uma faceta raramente destacada nos seus registros biográficos. Em 1957, Flávio Cavalcanti, um apresentador de televisão que, em seu programa, costumava quebrar discos de músicas cujas letras, segundo ele, atentariam contra a moral e os bons costumes, investiu contra os forrós de Zé Dantas que utilizavam termos como “imbigada”, “chêro no cangote”, “arrôto de lascar”, entre outros, e afirmou que a música “Siri jogando bola” era uma grande besteira porque nunca ninguém viu siri jogar bola.


Zé Dantas, em longo artigo publicado em uma edição dominical do jornal carioca “Correio da Manhã”, sob o título “A música folclórica e um ‘crítico’”, escancarou a ignorância do apresentador sobre o tema, com a mais rigorosa fundamentação teórica sobre o assunto. O compositor argumentava no seu artigo que as rimas de “Quatro imbigadas” ( “São sete minina / são sete fulô / são sete umbigada / certeira qu’eu dou!”) estavam inscritas no Dicionário do Folclore Brasileiro de Câmara Cascudo e foi feita a referência devida no selo do disco. Com relação ao “Siri jogando bola”, Zé Dantas alegava que também nunca tinha visto “boi conversando, segundo referem os contos do tempo em que os bichos falavam”. Para o jornalista campinense José Telles, pesquisador da nossa música popular, o tema havia sido adaptado de um refrão registrado pelo escritor Mário de Andrade quando das pesquisas que ele realizou no Nordeste: “Eu vi dois tatus jogando bola / Eu vi dois tatus bola jogar”.
Correio da Manhã, RJ, 02.06.1957
Zé Dantas refutava, no seu artigo para o “Correio da Manhã”, as absurdas acusações que sofrera do despreparado apresentador:

“Pensei, então, que o meu ‘crítico’ talvez condenasse minha teimosia em conservar o sincretismo musical formado pela melodia ibérica e o canto gregoriano, únicas influências sofridas pela clássica música sertaneja, que a tradição – graças a Deus – severamente ainda guarda [...] Também taxar de imoral o nosso folclore porque em algumas de suas cantigas, observa-se certo sensualismo, é não ter noção de psicologia social. É acusar aleivosamente o nosso povo de libertino, pois é ponto pacífico que o folclore reflete o sentimento popular. Nem sempre o sensualismo representa imoralidade. Às vezes, pelo contrário, sua ausência gera fatos escabrosos”.

Durou pouco mais de uma década a parceira de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, resultando na produção de cerca de cinquenta músicas, um número bastante representativo, considerando que a parceria do Rei do Baião com Humberto Teixeira, tem metade desse número, conforme levantamento feito por Dominique Dreyfus, biógrafa de Gonzaga.

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Zé Dantas e Luiz Gonzaga ▪ 1950s ▪ Fonte: Facebook / Parque Asa Branca
No carnaval de 1961, Zé Dantas foi passar o feriado no sítio de Luiz Gonzaga, em Miguel Pereira, próximo ao Rio. Num acidente banal, rompeu o tendão do pé. Fez uma cirurgia que não foi bem sucedida e, como também tinha problemas na coluna, começou a tomar cortisona, tendo o medicamento comprometido os seus rins, o que veio a causar a sua morte, um ano depois do acidente. Tinha 41 anos. Deixou várias músicas inéditas, uma delas “Samarica Parteira ”, que Luiz Gonzaga só veio a gravar em 1973.

Em 1963, um ano depois da morte de Zé Dantas, Luiz Gonzaga gravou um disco somente com músicas que os dois fizeram juntos, mas que, também, incluiu o baião “Homenagem a Zé Dantas”, composto pelo paraibano Antônio Barros. Em 2013, a cantora natalense Marina Elali (Marina de Souza Dantas Elali), neta de Zé Dantas, fez um show reverenciado as músicas dele e de Luiz Gonzaga, com a participação de grandes nomes da música brasileira, no qual ela fez um dueto com uma gravação de voz do seu avô na música “A Letra I”, que ele compôs para sua mulher Iolanda.


Luiz Gonzaga, em relato feito ao seu biógrafo Sinval Sá, afirmou que quando encontrou Zé Dantas a primeira vez e ele cantou “Já faz três noite que pro Norte relampeia / E a asa branca ouvindo o ronco do trovão / Já bateu asas e voltou pro meu sertão”, ele teria dito:

“Você é o que está faltando no nosso baião, Zé Dantas. Eu sinto que você é diferente de Humberto Teixeira. A gente diz pra ele: faça uma letra sobre esse livro. Ele faz. Faça uma sobre os olhos daquela morena; ele faz. Mas você é diferente; é o próprio Sertão, é a vivência, o forró, a alma da nossa gente. O próprio forró, Zé!”.



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  1. Isso é Cultura!

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  2. Parabéns por mais um belo texto, com contribuição valiosa para nossa memória cultural e musical.

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  3. Faz gosto encontrar escritos como este, notadamente quando mostra a nossa alma e sentimento.
    É lamentável, por outro lado, esse desvirtuamento que sofrem nossos costumes e tradições, sem que haja uma reação.

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  4. José Mário Espínola26/6/22 21:55

    Excelente crônica memorial, rica em história e alma, como sempre muito bem editada.
    Parabens, Flávio Ramalho!

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