Acho que era ela. A boca, o jeito dos cabelos e os olhos claros denunciavam os traços da juventude e, assim, os da menina de azul e bra...

Lembranças

nostalgia paraiba cronica
Acho que era ela. A boca, o jeito dos cabelos e os olhos claros denunciavam os traços da juventude e, assim, os da menina de azul e branco que percorria aquela calçada, a cada manhã, a caminho do Lins de Vasconcelos, nos idos de 1960.

Já não mais andava em passos ligeiros nem com o balanço dos quadris firmes e redondos, como é natural, em qualquer época, às mocinhas de 14 ou 15 anos. Mas, ainda assim, havia algo naquela senhora de meia idade que me lembrava a aluna do Lins. Era ela, sem dúvida, pois agarrada a si estava uma pirralha próxima da adolescência com a fronte erguida, o nariz empinado e o mesmo ar de quem desafia o mundo. Avó e neta?

Cruzamo-nos entre as gôndolas do supermercado. Parei o carrinho de modo a facilitar-lhes a passagem e, em troca, recebi uma inclinação leve da cabeça, à guisa de agradecimento. Mais tarde, quando voltamos a nos aproximar um do outro no balcão de carnes, senti seus olhos sobre mim prontamente desviados quando ergui os meus. E ficamos nisso. Nenhuma palavra trocada e nenhum sinal mais claro de mútuo reconhecimento.

Recém-chegado a João Pessoa com uma falência paterna na bagagem, fui obrigado a trabalhar aos 15 anos a fim de ajudar no sustento da família. Saía de casa por volta das 5 da manhã e cobria por bicicleta o trajeto desde a Barão de Mamanguape, no bairro da Torre, onde morava, até a “Tribuna do Povo”, um jornalzinho de doze páginas situado na Duque de Caxias.

Meu trabalho consistia na encadernação de páginas que a impressora, uma plana, não conseguia dobrar. Encontrava as folhas abertas e ainda largando tinta sobre uma mesa comprida
e dava início às dobragens. Puxava, de montes diferentes, uma folha sobre outra e montava os cadernos com o auxílio de uma espátula para fazer os vincos. Depois, colocava uns 50 jornais no bagageiro da bicicleta e saía para a entrega de assinaturas a escritórios, consultórios e bancos que, ainda fechados, recebiam cada exemplar por baixo das portas. Feito isso, retornava para varrer e espanar o ambiente da Redação. Aprontava tudo antes das 7 horas, tomava banho e me punha, penteado e de roupa limpa, à porta da “Tribuna”. Minutos depois, por ali passaria a lourinha bonita com quem eu trocava olhares e acenos, até que dobrasse a esquina, no pátio da Igreja de São Francisco. Vinha sempre na companhia de uma menina branquinha que, aparentemente, se deliciava com a situação.

Essas visões me foram, por algum tempo, o momento mais esperado dessa fase difícil da minha existência. Era quando eu esquecia a perda do patrimônio familiar (a Padaria do velho Juca) e da vida mais próspera, alegre e tranquila. Até a quebra da velha impressora atrasar a entrega dos jornais, atividade em que fui flagrado pela menina que então proporcionava, diariamente, os meus melhores momentos. Cutucou a amiga e comentou em voz alta: “Ah, ele é jornaleiro”. E nunca mais olhou para mim, exceto, talvez, neste domingo de supermercado.

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  1. Flávio Ramalho de Brito17/6/22 06:56

    Texto primoroso

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    1. frutuosochaves@gmail.com17/6/22 08:49

      - Grato, amigo

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  2. Relembranças, notadamente como estas, nos fazem remoçar, com alegria ou nostalgia, mas sempre de tempos saudosos.

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    1. frutuosochaves@gmail.com17/6/22 09:09

      - Um abraço, Arael.

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  3. Ângela Bezerra de Castro18/6/22 11:28

    Eu não tenho dúvida de que foi exatamente assim. Todos pagamos nosso tributo em relação ao amor. Todos temos histórias tristes de desencontros. São “As confissões de amor que morrem na garganta".

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