No Paraíso perdido (1667), de John Milton (1608-1674), o Canto I termina com um concílio entre os 12 anjos, discípulos rebeldes – M...

Poetas, Profetas

paraiso perdido john milton gustave dore
No Paraíso perdido (1667), de John Milton (1608-1674), o Canto I termina com um concílio entre os 12 anjos, discípulos rebeldes – Moloque, Quemós, Baalim, Astarote, Astorete ou Astarte, Tamuz, Dagon, Rimon, Osíris, Ísis, Hórus e Belial –, em pleno palácio de seu chefe, Satã, palácio que, não por outra razão, se chama Pandaemonium, Pandemônio, a reunião de todos os demônios, literalmente. É o momento em que eles começam a discussão sobre a rebelião contra Deus. O concílio avança pelo Canto II, com a fala de alguns dos rebeldes.
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É interessante notar a apresentação que John Milton faz de Belial (versos 108-118, em excelente tradução de Daniel Jonas):

De outra ala alçou-se Belial, em ato mais grácil e humano. Não perdeu ser mais probo o Céu. Parecia Talhado p’ra honradez e altas façanhas: Tudo oco e falso; muito embora a língua Destilasse maná, e de vil lógica Eduzisse a melhor razão, vexando Conselhos sábios: eram só baixezas; Cioso no vício, mas em ações nobres Frouxo e tíbio: contudo soava bem, E com dicção suasória começou.

A atualidade profética do poeta inglês é genial. Nos tempos atuais, das grandes verdades propaladas aos quatro cantos, o que mais vemos são vacuidade, falsidade, lógica vil, baixezas, cuidado extremo com o vício, e, para as ações nobres, frouxidão e tibiez. Tudo envolto em melíflua língua, de onde corre o maná da persuasão.

Ora, esta passagem de John Milton nos remete a um outro poeta, Lucrécio (99-55 a.C.), autor de uma obra responsável pela antecipação do Renascimento, De rerum natura (Da natureza das coisas), ao ter um dos seus manuscritos sido redescoberto por Poggio Bracciolini, em 1417, numa biblioteca de um mosteiro, em Fulda, na Alemanha (recomendo o excelente livro
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A virada: o nascimento do mundo moderno, de Stephen Greenblatt, Companhia das Letras, 2012, com tradução de Caetano W. Galindo).

O crédito que muitos dão à vacuidade e à falsidade da retórica fácil e danosa dos políticos é produto da ignorância, muito embora seja notório que muitas das orelhas que os escutam se ufanam de serem letradas e leitores vorazes. Vá saber, como se diz vulgarmente... E sabemos como a ignorância pare a miséria. O poeta Lucrécio não regateia, quando se trata de repudiá-la: para sair da miséria é preciso sair da ignorância, que anda de velas pandas no Brasil das redes sociais. E o caminho incontornável para combatê-la é a escola, é investimento maciço na educação. Todos sabemos disso, mas a nossa classe política faz questão de ignorar olimpicamente o que o mundo inteiro civilizado sabe, roubando a cena (sem trocadilhos...) com as suas falcatruas. As operações da polícia e as manchetes dos jornais, ambas diárias, não nos deixam mentir, mas não os intimidam. A ação da polícia é inócua sem a ratificação da justificação e o inconformismo claro
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da população, que, resignadamente tudo aceita por conta da venda espessa da ignorância, também produto do partidarismo ideológico, não importa quantos títulos de doutor o sujeito tenha.

Há 2100 anos, o poeta Lucrécio, advertia em De rerum natura (Da natureza das coisas), para a avidez dos homens e suas práticas nefastas. Veja-se, por exemplo, um trecho do Livro III, versos 59-64, em tradução nossa, que nos remete para uma séria advertência:

59 Denique avarities et honorum caeca cupido, 60 quae miseros homines cogunt transcendere fines 61 iuris et interdum socios scelerum atque ministros 62 noctes atque dies niti praestante labore 63 ad summas emergere opes, haec vulnera vitae 64 non minimam partem mortis formidine aluntur.
59 Enfim, a avidez e o desejo cego de honras, 60 que constrangem homens míseros a transgredir os limites 61 do direito e enquanto (constrangem) seus sócios e agentes de crimes 62 (a) fazer esforços, noites e dias, em enérgico labor, 63 para subir às mais altas riquezas, estas feridas se nutrem 64 de parte não mínima da vida pelo terror da morte.

Euclides da Cunha dizia estarmos condenados à civilização: ou progredimos ou desaparecemos. Se o Brasil continuar como está, não tenho dúvida de que desaparecemos, engolidos pela barbárie. Não vejo, no horizonte, qualquer sinal de avanço, senão de mais ignorância e miséria.

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