Deslizam nos ventos das recordações, fatos, pessoas e datas que assomam renitentes na nossa existência. São eventos e situações vivida...

A Juventude Carbonária, a prisão e o camarada João Manoel

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Deslizam nos ventos das recordações, fatos, pessoas e datas que assomam renitentes na nossa existência. São eventos e situações vividas que ficam tatuadas na memória como marcas insepultas. Não emergem de lembranças adormecidas no meu subconsciente, elas estão esculpidas numa desperta e ativa consciência. Estão sempre à mão. Precipitam-se ordenadas por um breve olhar sobre as sendas e passos vividos. Sem qualquer esforço memorial se derramam sobre meus ombros dias, fatos por vezes convulsos, datas e imagens de cumplicidade com pessoas que encenaram atos vivenciados no torpor de violências e injustiças ditatoriais.

UFSC
Retorno com tristeza aos primeiros dias de Abril de 1964. O país fora fraturado pelo golpe militar, que, como dizia Carlos Heitor Cony, "os militares se assanharam e invadiram o Brasil". Ficaram décadas sem refluírem para as casernas. Naqueles dias fui interpelado na minha casa por três militares, e, identificado, fui rebocado num jipe sem maiores explicações. Todos armados, e o comando era de um Sargento com submetralhadora a tiracolo. Fui arremessado na viatura, e em pouco tempo exposto ao Major Cordeiro, no 15º RI. que exibindo uma expressão sorridente, determinou o meu encarceramento numa cela junto com os outros. Aberta a grade, instado entrei, e me deparei com umas 15 pessoas aprisionadas. Apenas reconheci Antônio Augusto de Arroxelas meu ex-professor. Logo fui identificado pela minha surrada farda do Liceu que exibia duas estrelas do cientifico.

Aproximou-se de mim, na cela, um cidadão alto, e, de modo delicado, me externou: fique calmo não vai lhe acontecer nada. Era por volta do meio dia e eu tinha uma fome danada. Perguntei se era possível comprar um pão, em seguida, na grade foi chamado o sentinela. Ao ser informado, foi providenciado um bandejão com a ração básica dos recrutas. Comi e me mantive sentado num canto da cela.

Acervo C
João Manoel de Carvalho era o meu gentil interlocutor, companheiro de cela. Muito tempo depois fiquei sabendo que além de João estavam lá outros os prisioneiros, além dele eram: Arroxelas, Adalberto Barreto, e outras lideranças, sindicais, lideres camponeses e vereadores da Várzea, na mesma cela, mas não lembro dos nomes e fisionomias. Havia um destemido líder denominado de Fuba, que tempos depois de solto, ao sair, fora trucidado. De estudante havia apenas eu. Não me lembro bem de detalhes, fisionomias, nomes afinal tinha apenas dezessete anos, e isto ocorreu há 58 anos. Soube de tudo muito tempo depois. Na ocasião sabia apenas que estava na proximidade de pessoas ligadas ao Partidão.

Lembro de que era uma cela grande, sem divisórias, que ficava à direita, logo na entrada do corredor do Quartel do 15 RI. Havia duas celas. Uma defronte da outra, sendo que na da esquerda só ficavam os presos políticos. Tinha uma privada literalmente no chão, um chuveiro, colchões  sem forros, no chão, todo este desconforto causava constrangimento. "Aqui se Aprende a Amar a Pátria", era um enorme letreiro no pátio interno.

Eu havia acompanhado os affaires políticos desde 1963, e era admirador e assíduo ouvinte de Brizola, todas as noites,
Senado
na "Cadeia da Legalidade", gerada pela Rádio Piratini e transmitida pela Mayrink Veiga, de São Paulo. Os informes sobre o golpe, tanques de guerra, tropas nas ruas, a formação dos CCC de caça aos comunistas, prisões, tudo isto e muito mais chegavam à longe Paraíba sobremodo nas denúncias dos valorosos diários Tribuna da Imprensa, Correio da Manhã e a Última Hora, do Rio. Brilhavam resistentes como Hélio Fernandes, Cony, Tristão de Athayde, Samuel Wayner, entre outros.

A minha formação progressista oriunda da JEC, das Encíclicas Papais, os grupos de discussão, católicos e comunistas, me ajudaram no meio estudantil ao combate à Ditadura, aos dezesseis anos. O pivô da minha prisão fora a intervenção de D. Daura Rangel, no Diretório Estudantil do Liceu. Daí em diante, todas as saídas de aula eram recheadas de discursos carbonários contra os gorilas. Inspirávamo-nos em Brizola, Arraes, Almino Afonso, Waldir Pires, Mario Covas, e muitos outros. O Che Guevara era o santo da minha geração. Os meus discursos inflamados chamaram a atenção dos dedos duros, denunciaram-me como um perigoso agitador. Até ir para a prisão, foram poucos dias. O medo não me atemorizou.

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Desde a data de 64 travei conhecimento com o ilustre preso João Manoel. Depois não o vi mais, nem me lembrava de sua então fisionomia. Vinte e dois anos depois, em 1986, quando retornei à Paraíba aproximei-me dele, pois o via não apenas como um grande jornalista e articulista, mas como um arguto bardo, inteligente e profundo conhecedor das pedras no campo da política. Durante anos, ouvi-o, e seguia seus profundos conselhos premonitórios. Ele me propiciou ideias através de sugestões e propostas de ação parlamentar.

Muitos êxitos, se é que os tive no meu pobre desempenho como político, muito devo creditar e reverenciar aos ensinamentos e reflexões críticas de João Manoel de Carvalho. Pedagógico, lúcido, critico mordaz, competente analista da política e leitor das contradições, ensinou-me, e muito, a trilhar sendas do submundo da politica e da gestão publica.

Décadas depois, não mais jovem, nem carbonário, e longe da prisão, embora tivesse penado no exílio longe da Paraíba por 17 anos, o reencontrei e passei a usufruir outra e formidável convivência com o João Manoel de Carvalho, que me acudiu com preceptor das minha breve e difícil caminhada politica. A leitura dos seus valorosos escritos foi muito importante. João, como um legitimo empedernido carvalho, nunca se vergou às seduções dos poderes. Era incansável crítico, combatente, sempre ao largo dos Poderes.

@contraponto
Como amigo de João Manoel, aprendi que na mundana e paroquial politica local não havia grandeza humana como nos ensinam os estadistas e os filósofos. Esta política era pária em intimidade com os artifícios demoníacos. Já nos disse Mário Vargas Llosa “quem faz politica não tem tempo para amar.” Hoje, me invade o infindável desejo de entoar o canto de Mercedes Sosa, "Volver a los Diecisiete” , de Violeta Parra, e começar tudo de novo. Sentir à flor da pele as emoções carbonárias de ontem.

João partiu. Não tive a oportunidade de revê-lo. Lamento muito. Ele sempre fará parte dos meus ícones admirados e respeitados. Cumpriu com grandeza sua honrosa missão, ao ser um percuciente espião da alma popular. Um dos melhores que a Paraíba já teve. Deixou um insigne e exemplar rastro de excelência intelectual e jornalística.

@contraponto
João me estimulou escrever crônicas para o jornal Contraponto, a sua ultima e formidável trincheira. Fiz várias. Todas eivadas de críticas e denúncias sobre o submundo político e social. E as dele, que eram preciosas, muitas eu lia na tribuna da Câmara Municipal, pedindo sob votos o registro nos anais da Casa de Napoleão Laureano.

Nas memórias do afeto e do respeito ele continuará vivo entre nós. Fez, e sempre fará na nossa memória o “contraponto” entre o jornalismo da ética e da decência, e a mídia marrom subalterna aos desígnios e a infecta vassalagem aos poderosos.

Cumpre-me externar com muita tristeza à esposa Socorro, e aos seus queridos familiares, os meus distinguidos sentimentos pela enorme e irreparável perda.

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  1. - Muito bem posto, amigo. Um João real, destemido e digno para quem não o conhecia.

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  2. JOSE MARIO ESPINOLA5/8/22 17:18

    João Manuel de Carvalho foi um valoroso jornalista. É muito justa a homenagem de Barreto.
    Em 1968 eu assistí, temeroso, o Autor, junto com Everaldo Soares Júnior, enfrentar os policiais federais armados, comandados pelo terrível delegado Emilio Romano, torturador. Estávamos ocupando o prédio da Faculdade de Filosofia, a FAFI, quando eles chegaram empunhando metralhadoras.
    Barreto e Everaldo subiram na amurada e proferiram discursos denunciando o delegado.
    Por muito pouco o delegado se conteve, e não ocorreu nada mais grave.

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