As castanholas se vestem de um tom vermelho antes de se despirem ao sopro dos ventos de agosto. As folhas entapetam a terra como um abr...

Há gosto

As castanholas se vestem de um tom vermelho antes de se despirem ao sopro dos ventos de agosto. As folhas entapetam a terra como um abraço em meio ao inverno. Orgânico lençol a cobrir e colorir, indistintamente, corpos vegetais e gélidas estruturas de cimento, como um salto de paraquedas sem controle ou alvo definido. Já à noite esfria as superfícies e incendeia a pele com mil sensações e arrepios em tentativas de tradução em livros, filmes, poemas, canções, com vãs interpretações. O entendimento pleno só virá com o experimento, com o toque entre a fria lâmina no pingo da chuva no pescoço desnudo, na mão livre.

Bird Lee
Há gosto para entender cada época do ano e suas cíclicas novidades, para aceitar o contato gélido que provoca no corpo o saborear da carne nua, um tipo de canibalismo sensorial. Sim, há gosto no degustar o barulho da chuva pela janela, feito um invasor do prazer inerte, o descanso físico e mental.

É idêntico ao transpor o vidro da janela e tocar o pingo que desliza após a colisão inesperada. Líquido encontro mediado pelas imprecisões da vida a redesenhar retas e curvas e indicar novas rotas, talvez sem escapatórias paradas, a única garantia dada pelos ponteiros do relógio. À frente rumo ao ponto final é a certeza. Porém, a garantia, ainda assim, é insegura.

Há gosto na tentativa de redimensionar o ressurgimento das folhas aos galhos, que agora retomam o verde e do alto abanam a cidade, tornam-se bússolas para indicar a direção da ventania. Assim como o cabelo solto é galopado pelas ondas de ar transparentes. Há gosto em seguir o fluxo ou permanecer parado, apesar da tempestade arrastar até as âncoras mais firmes ao leito marinho.

Bird Lee
Nas proximidades, o paralisado mundo sobre rodas faz com que os ponteiros andem mais rápidos. Incontrolável tempo desorganizado pela aglomeração de seres, sobreviventes amontoados. Em filas, arrastados seguem todos até um novo esperar. São feito muares humanos brincando de ser sapiens. Mas, qual a sabedoria? Há gosto para vagar sem rumo parado no meio de uma avenida ou apenas seguir a lentidão que atropela o que foi programado.

Assim, rodopia a mente. E, ali, naquela caixa de metal vagarosa, cada cabeça tenta escapulir da arapuca temporal, alcançar mundos distantes. Assim, surgem palavras, formam-se frases aparentando alforria. O tempo, esse ser que ignora apelos, marcha sempre implacável. Quase é possível tocá-lo pela janela quando ele passa no sentido contrário. Há gosto em tentar aproveitar o escriba, em imaginar domar sua linha que amarra firme a vida desde o seu início.

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