“A infinita riqueza da natureza em coisas belas e sublimes reserva a todo o homem, que tenha os olhos abertos e seja dotado de senso e...

Quando os Artistas se encontram: Ernst Haeckel e Augusto dos Anjos

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“A infinita riqueza da natureza em coisas belas e sublimes reserva a todo o homem, que tenha os olhos abertos e seja dotado de senso estético, uma origem inesgotável de gozos dos mais raros.”
Haeckel, Os enigmas do universo, Capítulo XVIII, p. 399-400

Ernst Haeckel não era só um cientista e dos mais prolíficos que se poderia encontrar. Por sua causa, a teoria da evolução de Darwin ganhou não só um ferrenho adepto, mas um pesquisador entusiasmado, que muito contribuiu, ainda no século XIX, para a sua divulgação e para a sua fundamentação científica. Haeckel era também um artista. Um desenhista minucioso e perfeccionista, que usou suas habilidades – um olho no microscópio e outro na reprodução do que via –, para representar as formas de vida marinha que ele estudou em suas diversas viagens, ilustrando seus livros, como as “35 pranchas magníficas” da sua monografia sobre as Radiolaria (1862), e nas outras cem pranchas publicadas, entre 1899 e 1904, com o título de As formas artísticas da natureza, cuja primeira finalidade
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“era de ordem estética” (L'art et la science de Ernst Haeckel; organisation de Rainer Willmann et Julia Voss, Taschen, 2021, p. 79 e 320).

A sua visão mais ampla sobre os fenômenos da vida e da natureza ajudaram-no a ver a relação entre arte e ciência, bem como entre a ciência, a filosofia e as Humanidades, a ponto de expressá-la citando Goethe, autor de sua preferência e de sua admiração, que considerava um dos primeiros evolucionistas: “Qui possède science et art/ a aussi de la religion” (“Quem possui ciência e arte/ tem também a religião.” – id. Ibid., p. 44). Ao dar-se conta dessa relação entre todas as coisas, Haeckel aproveita-se da ideia do amigo, o linguista August Schleicher, criador de uma árvore mostrando o parentesco entre as línguas indo-germânicas, e faz a primeira árvore genealógica da evolução da espécie, para melhor entender a relação entre todos os seres viventes.

Haeckel, no entanto, não se deu por satisfeito com esta relação intrínseca entre os seres vivos. Ampliou-a para a relação entre a matéria orgânica e a inorgânica. Surge daí, de novo inspirado em Schleicher, a sua teoria do monismo, que ele vê como uma religião de fé científica (Os enigmas do universo, Capítulo Primeiro, “Como se estabelecem os Enigmas do Universo”, p. 13). O monismo não consiste apenas no fato de que todos os seres vivos evoluem de uma única forma simples,
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mas que, sobretudo, existe uma simbiose inequívoca entre o orgânico e o inorgânico, de tal modo que faz desaparecer o conceito de dualidade e de separação entre matéria e espírito. O monismo é, portanto, mais complexo do que se poderia imaginar ou do que o que se comenta vulgarmente:

“Haeckel retoma de August Schleicher a noção de ‘monismo’ para uma visão de mundo em que a diversidade dos fenômenos repousa sobre um único princípio. Este princípio, segundo Haeckel, era a própria evolução. Tudo se desenvolve, tudo remonta a uma origem, tudo se encontra em ligação indefectível. Era preciso renunciar a toda visão dualista; a matéria e o espírito tornavam-se um, além disso, existia uma unidade entre a natureza orgânica e a inorgânica. Haeckel chegou, então, à seguinte conclusão: ‘Toda ciência natural verdadeira é filosofia e toda filosofia é ciência natural verdadeira’. Era preciso, pois, também considerar as ciências humanas integralmente como um edifício do saber unitário e recusar a distinção tradicional feita entre as ciências da natureza e as ciências do espírito”.
▪ 'L'art et la science de Ernst Haeckel', p. 30, tradução nossa ▪

Aliás, Haeckel foi acusado pelos que não o compreenderam e pelos seus desafetos, que não eram poucos, de muita coisa, até de vulgarização da ciência. Preocupado em não tornar a ciência um conhecimento único de especialistas, que, propositalmente, a obscurecem, ele foi um dos primeiros cientistas renomados a tornar o seu conhecimento de biologia evolutiva acessível a um grande público, pelo menos naquilo que era possível, vulgarizando-a, no sentido bom da compreensão comum, que existe no latim:
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“En propageant la pensée de Darwin et en popularisant ses conséquences, Haeckel devint l’un des scientifiques les plus influents du XIXe siècle” (“Propagando o pensamento de Darwin e popularizando suas consequências, Haeckel tornou-se um dos cientistas mais influentes do século XIX.”, id. Ibid., p. 6).

A sua relação com a comunidade científica e intelectual, nem sempre foi pacífica e nem poderia ser, principalmente entre filosófos e teólogos – “se faisant des amis en biologie et des ennemis en philosophie et piétinant la théologie” (“fazendo amigos em biologia e inimigos em filosofia, e pisoteando a teologia”, id. Ibid., p. 33) –, Haeckel foi incansável na defesa do pensamento evolucionista e procurou demonstrá-lo em conferências, seminários e nas suas obras, cuja preocupação de vulgarização, até onde se poderia fazê-la, incomodou muitas pessoas.

É sobretudo com o livro Les énigmes de l'univers (Os enigmas do universo, 1899) que ele tem um grande reconhecimento pela divulgação de suas pesquisas, e onde se discute mais a fundo o conceito do monismo. Esse livro, apesar das brigas eternas entre França e Alemanha, e das feridas ainda mal curadas, na época da guerra franco-prussiana, recebeu uma tradução francesa apenas 3 anos após a sua publicação na Alemanha.
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Tradução que ajudou sobremaneira a divulgação de suas ideias, para fora das fronteiras europeias. Diz o autor:

“As vistas novas que estabeleci na minha 'Morfologia geral', a despeito do feitio rigorosamente científico com que as expus, tendo apenas despertado um pouco a atenção das pessoas competentes e encontrado pouco êxito junto delas, tentei reproduzir-lhes a parte mais importante numa obra mais pequena, de feição popular, que fosse acessível a um maior círculo de leitores cultos. Foi o que fiz em 1868 na minha História da criação natural (Conferências científicas populares sobre a teoria da evolução em geral e as de Darwin, Goethe e Lamark em particular). Se o êxito da 'Morfologia geral' tinha ficado muito aquém do que eu tinha direito a esperar, pelo contrário o da 'Criação natural' excedeu muito a minha expectativa. No espaço de trinta anos, apareceram nove edições revistas e doze traduções diferentes. Apesar das suas numerosas lacunas, esse livro contribuiu muito para fazer penetrar em todos os meios as grandes ideias diretoras da evolução.”
▪ 'Os enigmas do universo'; tradução de Jaime Filinto, 4ª edição, Porto, Lello & Irmãos, s. d., Capítulo V, “A nossa genealogia”, p. 96-97 ▪

É aí que se desfaz, pelo menos para mim, o mistério da leitura de Haeckel por Augusto dos Anjos. Com a tradução francesa de Os enigmas do universo, teria se dado o encontro entre estes dois artistas. Augusto dos Anjos teria conhecido mais profundamente o monismo e outras ideias de Haeckel a partir do conhecimento desse livro, uma vez que isto é mais do que evidente na obra do poeta do Pau d'Arco. Desse modo, o conhecimento de Augusto dos Anjos sobre Haeckel teria acontecido em primeira mão, não apenas através de amigos ou de professores. Os fortes indícios na sua poesia só poderiam ter ocorrido com a leitura atenta da obra do cientista e não com sínteses ouvidas e comentadas sobre a teoria monista da evolução.

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A principal evidência é o fato de que, na poesia de Augusto dos Anjos, o evolucionismo é um veio importante que não há como ser evitado. É incontornável. É possível que, além do conhecimento da teoria de evolução de Darwin, Augusto se tenha deixado convencer e encantar pelo discurso de Haeckel, diante da comodidade que a língua francesa lhe proporcionava. Conceitos, termos técnicos, expressões, que se encontram na obra do cientista, estão em Augusto dos Anjos com uma propriedade, com uma justeza e com uma naturalidade que só tem quem se sente muito cômodo diante do que uma teoria complexa, como a da evolução da espécie, pode conter.

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Ernst Haeckel
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Augusto dos Anjos

O estudo de Haeckel pelo jovem estudante paraibano aficionado por conhecimento e pela ciência da época nos proporcionou o encontro entre dois artistas. O que Haeckel fez ilustrando a vida marinha primitiva, Augusto dos Anjos fez transformando o saber científico em poesia. Poesia pura e plena:

“Todos estes progressos no gozo estético tirado da natureza – e ao mesmo tempo na compreensão científica dessa natureza – são outros tantos progressos na cultura intelectual superior da humanidade e por consequência na nossa religião monista.”
▪ Os enigmas do universo, Capítulo XVIII, “A nossa religião monista”, p. 399 ▪

O poeta foi, contudo, mais além do que, no seu ateísmo confesso, Haeckel propunha. Augusto assimilou a essência do conhecimento evolutivo da época e compreendeu o monismo como o fim de uma dualidade entre matéria e espírito, entre o orgânico e o inorgânico, emprestando ao carbono um papel essencial na vida (“o átomo do carbono, esse verdadeiro criador do mundo orgânico!” –
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O Monismo, tradução de Fonseca Cardoso, Porto, 1908, p. 18), mas não ficou apenas na volta do orgânico ao inorgânico e daí para, mais uma vez, o orgânico, num ciclo de que se alimenta a vida. Augusto preconizou a volta ao uno espiritual, quando a nova vida a se formar virá acompanhada do espírito que no éter vibra:

“De princípio não tínhamos nada mais no espaço infinito do que o éter elástico móvel, e inumeráveis partículas discretas, homogêneas, dispersas no seu seio, os átomos primitivos. Talvez estes sejam mesmo na origem os pontos de condensação da substância vibrante, cujo resto o éter representa. Quando os átomos primitivos ou os átomos de massa se reuniram em grupos por números determinados, os nossos átomos elementares constituíram-se.”
▪ id. Ibid., p. 19 ▪

Esta hipótese levantada por William Crookes, na Gênese dos elementos, é que daria vida ao protylo, o elemento químico primordial de que resultaram os seis primeiros elementos químicos, de cuja combinação, segundo Gustav Wendt, surgiram os demais elementos (id. Ibid., p. 18). Não é à toa que no soneto “Sonho de um Monista”, Augusto dos Anjos fala da “verdade espantosa do Protilo”:

“A verdade espantosa do Protilo Me aterrava, mas dentro da alma aflita Via Deus — essa mônada esquisita — Coordenando e animando tudo aquilo!”

Para, em seguida, em “Os Doentes” (estrofe 59, Parte III), citar textualmente Haeckel – “A vida vem do éter que se condensa”...

A concepção artística de Haeckel encontra-se, assim, com a concepção científica de Augusto dos Anjos, construindo um quiasmo perfeito, em que a Arte beneficiou o cientista, como a Ciência beneficiou o artista, um dos motivos por que é indevido dizer que o poeta do Eu é cientificista.

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  1. Ângela Bezerra de Castro6/8/22 17:29

    Ótimo estudo, Mil. Essa foi a leitura de professor Flósculo da Nóbrega em A sombra do EU. Você, com sua didática erudita, amplia e aprofunda a tese do grande Mestre.

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