Reencontro um livro de que me desfiz não sei como. Estou só, a casa no primeiro sono, a solidão da noite e o peso dos anos levando-me juntos a recorrer à brochura encontrada por acidente num sebo pouco frequentado da Visconde de Pelotas. Ia a caminho da ótica, tombei numa saliência da calçada, indo bater entre as estantes do sebo. Deram-me água, retomei o fôlego e me vi com o olhar num livro de Palmeira, “O habitante do amanhã”.
Palmeira Guimarães, que fase ansiosa e penosamente lírica de vida! Jovens em Campina, cultivávamos juntos uma melancólica sensação de falta. Dessa melancolia que deu lugar a um rico ensaio recente de Helder
Hélder Moura ALCR
Descobriu-se depois que éramos poetas. Descobriu-se – é como está o verbo. Eu sem versos apresentáveis, de mim próprio desconfiado, Palmeira desatando a angústia numa voz tangida em instrumentos de corda. Tudo nele escorria manso, desabrochando em sextilhas, oitavas ou bem acentuados decassílabos. Parecia que as palavras brotavam sem a sua menor intervenção.
Algum tempo depois, já desfeito esse convívio efetivo, lembrei-me dele ao surpreender o sofisma de Tobias Barreto numa leitura sebenta na velha biblioteca da General Osório. Se bem ou mal entendi, Tobias colocava o sentimento, esse veio sentido no coração, como o mais alto grau na escala de evolução da matéria. Sustentava: assim como a natureza permite que a flor cheire e não a pedra, assim também tem o homem o atributo maior e único na natureza de pensar e sentir. Com Tobias à minha frente, lembrei-me de Palmeira. No que ele escrevia ou declamava era tudo tão natural.
MS
Anos depois volto a deparar-me não mais com o agente do cartão de crédito, mas com o Palmeira das antigas fontes de ternura. Havia retornado à primitiva missão. Leu, andou, mexeu e terminou poeta nos versos e missionário nas vestes, reunindo em livro os salmos da terra de forma tão natural que parece o de um enviado:
“Estafeta do tempo,
andarilho do espaço,
não sou o que digo,
mas só o que faço.”
Está em: “O habitante do amanhã”, onde o tropeço acabou de me levar, cuja epígrafe homenageia os cantadores do Nordeste:
“Você sabe o que é saudade?
Saudade é a falta pungente
que uma metade da gente
sente da outra metade.”