A hipálage é uma figura de sintaxe pela qual se aplica a um termo um atributo que pertence a outro. Tal recurso enriquece o estilo por quebrar a expectativa lógica e criar ambiguidade, sugerindo ao mesmo tempo dois sentidos – um real e outro figurado. A hipálage condensa significados ao fazer com que um único termo se irradie sobre diferentes elementos da frase. É comum que, por meio desse expediente, amplifique-se o valor semântico dos adjetivos e se produzam novas figuras.
Suresh Kumar
Um exemplo desse recurso está na locução o “voo branco das garças” (em vez de “o voo das garças brancas”). Com a permuta, Eça de Queiroz produz uma bela imagem de condensação visual. A brancura deixa de ser um atributo apenas dos pássaros e se estende à ação praticada pelo bando. Efeito semelhante, desta vez ligado à metonímia, o autor português obtém ao mencionar as “lojas loquazes dos barbeiros”, em vez de “as lojas dos barbeiros loquazes”. A profusão de vozes é atribuída aos locais (continente) e não aos palradores funcionários que neles trabalham (conteúdo).
Um caso bastante expressivo de hipálage encontra-se no conto “As margens da alegria”, de Guimarães Rosa. Vale a pena resumir a história, pois a progressão dos eventos narrados concorre para intensificar o efeito da figura. Um menino viaja com os tios para um lugar “onde se construía a grande cidade”. Chegando lá, encontra um peru e fica deslumbrado com a sua beleza. No dia seguinte sai para um passeio e, ao voltar, descobre que o peru foi morto para uma festa de aniversário.
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Abatido e emocionalmente cansado, ele vai visitar as obras de construção da cidade. Encontra um cenário desolado, onde a Natureza parece agonizar. A poeira e o cascalho resultantes do trabalho de terraplenagem poluem um ribeirão e desbotam as plantas (o conto possui uma atualíssima mensagem ecológica).
Depois a família chega ao lugar onde se prepara o chão do aeroporto. Por lá transitam compressora, cilindros, caçambas. A tia do menino quer saber como haviam cortado o mato. Um tratorista lhe mostra; operando a derrubadora, ceifa uma das poucas árvores restantes, que cai de chofre agitando os galhos.
O menino associa a morte do peru, que o faz intuir “o possível de outras adversidades”, com a queda da árvore. Percebe cheio de dor como é frágil o limite entre a alegria e a tristeza, a vida e a morte: “...entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia”. E guarda a memória dessas perdas na “pedra” que vai se formando em sua alma.
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Antes de se desencantar, o menino passa por um momento de perplexidade. É logo após a árvore cair. Guimarães Rosa escreve que ele “olhou o céu – atônito de azul”. O narrador atribui ao céu uma qualidade que se aplica à criança; quem ficou atônita foi ela, não a abóbada celeste. Com essa transposição ele dá ideia de um céu distante, que não se comove com o sofrimento humano. Um céu tão indiferente quanto intenso em sua uniformidade cromática, e que parece estalar de azul. O céu de Brasília.
A hipálage não se resume ao deslocamento de atributos. Ela também opera subvertendo a lógica do anunciado ao permutar os papéis atribuídos aos componentes do discurso. Um clássico exemplo se encontra no conto “A cartomante”, de Machado de Assis, cuja trama envolve uma traição conjugal. Camilo tem um caso com Rita, esposa do seu velho amigo Vilela. Nada parece perturbar a pecaminosa paz dos adúlteros, até que a mudança de comportamento do marido desperta neles a suspeita de que Vilela desconfia da ligação entre os dois. Temerosa, Rita resolve consultar uma cartomante; Camilo, que é um cético, tenta demovê-la desse intento. Ainda assim ela faz a consulta, da qual sai mais tranquila. A cartomante lhe diz que o marido de nada desconfia.
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Certo dia Camilo recebe um bilhete de Vilela, no qual o amigo escreve que precisa falar urgentemente com ele e o espera em sua casa. A inusitada correspondência gera no rapaz desconfiança. No caminho para a residência do casal, Camilo vê ao longe a casa da cartomante. Quer seguir em frente, mas percebe que “a casa olhava para ele”. Com essa hipálage (inversão entre sujeito e complemento), Machado revela o temor do personagem e sugere o seu propósito de consultar a vidente. O apelo é inescapável, pois a casa “o chama”, intensificando o conflito que há em Camilo entre o racional ceticismo e a fraqueza supersticiosa. Personificada na ação de “olhar”, a casa entra na trama e funciona como um reflexo do que se passa no interior do moço.
Camilo então adentra o domicílio e faz a consulta. Matreira, a mulher suspeita do motivo que levou o rapaz a procurá-la e, para receber um bom dinheiro, lhe diz que ele não corre nenhum risco; o marido não sabe de nada. Aliviado, Camilo destina-lhe uma generosa gratificação e segue para o encontro com Vilela. Mal entra na casa, vê o cadáver de Rita estirado na sala e, ainda não refeito da surpresa, recebe três tiros no peito.
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Tanto o exemplo de Guimarães Rosa quanto o de Machado de Assis mostram o poder da hipálage para, atuando poeticamente, indicar a intensidade de estados emocionais. Ao romper a lógica dos enunciados, ela permite que emerjam fantasias inconscientes e concorre para que se amplie a visão psicológica dos personagens.