Estonteado, ainda pude ver meu corpo esticado: durinho. Era manhã de sábado. O céu estava acinzentado e o ar poluído. A paisagem daquele dia não seria diferente de tantas outras do inverno paulista — mórbida e depressiva.
Caía uma fina garoa que deixava a sensação térmica ainda mais fria. Pensei: logo eu, que trazia nas veias o sangue quente paraibano, estava ali como um pedaço de carne fria, prestes a virar composto orgânico da terra. Eu, que sempre preferi o calor — principalmente o feminino —,
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Sorri de minha miséria. Ainda que meu sorriso não pudesse ser notado, sabia que era um riso espiritual. Quisera naquele momento um abraço fraterno qualquer para aquecer a frieza que coagulava em minhas veias. Quiçá conter a ironia que cercava os meus restos mortais.
Curiosos aproximavam-se de meu cadáver fazendo o sinal de cruz. Todos estavam crentes de que meu espírito já estivesse numa outra dimensão. Alguns de fato demonstravam espanto, enquanto lamentavam o meu fim. Ouvi um sussurro de meu vizinho praguejando sobre quão fútil era a nossa passagem, assim como notei muitos lábios descontraídos a sorrir pela minha desgraça.
Havia gente comendo e bebendo à sombra de minha memória. Discretos cochichos masculinos de quem cuidaria dos meninos e da viúva. Ah, sim! Diziam... Aquela pobre e farta viúva cheia de dotes sinuosos e com andar “chamegante” que parecia caminhar na passarela de Copacabana. Espetáculo de viúva que merecia toda atenção do mundo!
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Eu comecei a não me recordar o que naquilo tudo seria anormal. Meu resquício de mente já não conseguia mais formatar sucessões de acontecimentos instantâneos à minha volta. Somente sabia que eu ainda estava ali e que não poderia mais despedir-me de meus amores.
Observei a expressão de meu rosto. Vi ternura como jamais havia enxergado quando fora vivo. Achei-me até mais simpático. Um morto elegante. Parecia que eu dormia o sono celestial. Da cabeça aos pés, totalmente imóvel. O bom daquilo tudo era que eu não tinha mais pressa ou preocupação com o dia seguinte.
Lembrei-me rapidamente do trabalho duro, das contas a pagar e da prestação do apartamento novo. Eita! O empréstimo que eu tinha feito no banco com as cláusulas de quitação, em caso de minha morte. Pensei na cara do gerente da Caixa quando soubesse de minha morte morrida. Ele jamais emprestaria tal dinheiro. E as demais despesas? IPTU. IPVA. Água. Telefone. Condomínio. Luz. Enfim: luz no fim do túnel. E o meu chefe que ainda nem tinha sido avisado de minha partida? Como estaria aquela
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Mamãe balbuciava palavras sem nexo e, a todo instante, esmurrava o peito em sinal de sofrimento. Parentes tentavam abraçar meu corpo, enquanto eu ouvia seus sinceros choros amargurados. Havia verdade e súplica por minha presença, meu espírito sentiu-se lisonjeado. Pensei em tornar ao corpo, mas aquilo não era possível. O início do fim não me pertencia e o curso de meus dias estava todo contado.
Senti um perfume de rosas. Suave. Ao fundo do salão, um grande clarão se abria junto ao som de uma pequena orquestra que tocava um fúnebre hino rallentando. Não conhecia aquela música, mas recordei de uma estrofe que dizia que era chegada a minha hora e tempo de partir num breve instante.
Olhei pela última vez em volta de meu caixão, havia muitas flores, cores e aromas. Uma faixa com mensagens de despedida, um pequeno púlpito com livro de assinatura dos presentes. Um dos textos que eu tinha escrito há poucos dias atrás estava dependurado num suporte do pequeno mausoléu de minha urna. Mas eu não mais lembrava o título e gostaria de sabe-lo antes de subir.
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A minha visão estava turva e as letras bem miúdas como todos os textos finitos que eu tinha outrora terminado. Naquele derradeiro registro, a caneta foi arrancada dentre os meus dedos e não consegui finalizar a história que eu gostaria de contar para o mundo inteiro ler, pois eu morri.






















