Fui convidada por um grupo de leitura que discutia o romance A educação sentimental, de Gustave Flaubert, para traçar um retrato do autor. Na ocasião, Rosa Freire d’Aguiar falaria sobre a tradução que realizou da obra.
Para me preparar, reli o romance. Em seguida, li o primeiro volume de O idiota da família, de Sartre (obra composta de três volumes) dedicado a Flaubert. Depois, li As regras da arte, de Bourdieu, no qual o autor dialoga criticamente com a interpretação de Sartre. Li também o breve ensaio de Henry James, Gustave Flaubert, no qual apresenta suas impressões sobre o escritor que chegou a conhecer pessoalmente, além de consultar a correspondência de Flaubert, selecionada e apresentada por Bernard Masson.
Sartre sobre Flaubert, em O idiota da família
Jean-Paul Sartre analisa a época de Flaubert, examina sua correspondência pessoal, os testemunhos dos irmãos Goncourt, de George Sand, entre outros, e a própria obra do autor. Em 1971, publica O idiota da família e, em entrevista ao Le Monde, no mesmo ano, afirma que gostaria que o livro fosse lido como um romance verídico. A obra resulta da fusão de biografia, filosofia e ficção. Sartre dedicou quinze anos à pesquisa e continuou a aprofundá-la até 1976. Morreu em abril de 1980.
O idiota da família, de Jean-Paul Sartre (1905–1980), é uma obra monumental dedicada a Gustave Flaubert. O livro propõe uma investigação filosófica e existencial sobre a formação de um escritor, articulando vida pessoal, contexto social e criação literária. ▪ Imagens: JPS Brasil
Em determinado momento, Sartre cita uma carta de Flaubert a uma amiga, Chantepie, na qual o escritor confessa:
“É de tanto trabalhar que consigo calar minha melancolia natural. Mas o velho fundo que ninguém conhece, muitas vezes reaparece, a chaga profunda sempre escondida.”
Sartre interroga o sentido dessa afirmação e supõe que sua origem esteja na infância do autor. O primeiro volume de O idiota da família dedica-se justamente à infância de Flaubert e ao ambiente familiar. Ao analisar sua obra literária,
Achille Cléophas e Caroline Fleuriot Flaubert: os pais de Gustave Flaubert. Fonte: Universidade de Rouen, França.
Sartre identifica nos personagens ações e conflitos que refletem as dinâmicas da própria família do escritor.
O irmão mais velho de Flaubert destacou-se desde cedo e seguiu a mesma profissão do pai, tornando-se médico. Este investiu intensamente no primogênito e chegou a restabelecer o direito de primogenitura para lhe assegurar a sucessão na direção do Hospital de Rouen — cargo que, a rigor, não era hereditário. Quando Gustave nasceu, a família residia no próprio hospital, onde o pai exercia a direção e mantinha rotina de trabalho extenuante. Foi nesse ambiente sombrio que Gustave veio ao mundo, espaço que Caroline, sua mãe, detestava. Ela dedicou pouca atenção à criança.
Sartre observa que Flaubert demorou a aprender a falar e a ler. Em contraste com o brilho do irmão mais velho, essa dicotomia levou os pais a tratá-los de forma desigual, passando a ver Gustave como intelectualmente atrasado. A mãe ensinava os filhos a ler, e tanto o primogênito quanto Caroline, nascida quatro anos depois de Gustave, aprenderam sem dificuldade. Sartre conclui que essas feridas precoces marcaram profundamente a infância de Flaubert e o conduziram a uma subjetividade solitária.
Achille e Caroline Flaubert: irmãos de Gustave Flaubert. ▪ Fonte: Universidade de Rouen, França.
“Esse será o campo em que se fertilizará o desejo da expressão individual e mais tarde optar pela literatura como uma saída. Veremos que essa relação difícil com as palavras determinou sua carreira. Flaubert para resolver seus conflitos internos se tornou escritor”, diz Sartre.
Bourdieu analisa Flaubert, em As regras da arte
Pierre Bourdieu responde a Sartre em As regras da arte. Gênese e estrutura do campo literário, publicado em 1992 pela Seuil.
As Regras da Arte, de Pierre Bourdieu (1930—2002), é um estudo fundamental sobre o funcionamento do campo literário e artístico. Tomando Gustave Flaubert como eixo central, Bourdieu demonstra que a autonomia da arte — a ideia de criação “pura”, desvinculada de interesses econômicos ou morais — é resultado de um processo histórico.
Nesse estudo, Bourdieu esclarece o sentido do título do romance. O que Flaubert denomina "educação sentimental" corresponde, segundo ele, ao processo de envelhecimento social, isto é, à aprendizagem das desilusões, dos limites e das acomodações impostas pelo mundo social. A falta de vontade de vencer de Frédéric, assim como sua relação ambígua com a herança, devem ser compreendidas nesse quadro.
Frédéric seria Flaubert?
“Onde se costuma ver Flaubert como Frederic, não passa de projeções complacentes e ingênuas do gênero autobiográfico. Na realidade, é um trabalho de autoanálise, de objetivação de si feita pelo autor.
O jovem Gustave Flaubert, em c.1846. ▪ Fonte: Universidade de Rouen, França
Flaubert se separa de Frederic pela indeterminação e impotência que definem Frederic. O próprio ato de escrever a história de Frederic, cuja impotência se manifesta, entre outras coisas, por sua INCAPACIDADE de tornar-se escritor, longe de sugerir com isso a identificação do autor com a personagem, ao contrário, marca a distância entre personagem e autor, no próprio ato de escrever a história de Frederic”. Comenta Bourdieu.
Frédéric projetava escrever um romance ambientado em Veneza, no qual ele próprio seria o herói e Mme. Arnoux, a heroína. O projeto, porém, jamais se concretiza. O personagem permanece marcado pelo fracasso.
“Flaubert ao escrever Educação sentimental é precisamente aquele que soube converter em projeto artístico a paixão inativa de Frederic. Portanto, Flaubert não poderia dizer: Frederic sou eu. Ao escrever uma história que poderia ser a sua, ele a nega, pois a história de um malogro não poderia ser a história daquele que a escreve”. Diz Bourdieu.
Mais adiante, Bourdieu destaca:
O leitor do Idiota da família se surpreende ao ler uma carta do pai ao filho quando este parte em viagem para o Oriente:
Michel de Montaigne (1533–1592), pensador e escritor francês, considerado o criador do ensaio moderno. ▪ Imagem: Wikimedia
'Aproveite sua viagem e lembre-se de seu amigo Montaigne que afirma que se viaja para relatar os humores das nações e seus costumes. Veja, observe e tome notas. Não viaje como um caixeiro viajante.'
Bourdieu conclui:
“Trata-se de um conselho para uma viagem literária como escritores a praticavam, e a própria referência a Montaigne, faz supor que Gustave comunicava a seu pai seus gostos literários e nos leva a duvidar, como sugere Sartre, que a vocação literária de Flaubert tenha se originado na maldição paterna e na relação infeliz com o irmão mais velho, médico brilhante mais de acordo com a imagem paterna do sucesso. A carta testemunha que as inclinações do jovem Gustave encontraram a compreensão e apoio do Dr. Flaubert, a crer nessa carta e em outros indícios, ele não era insensível aos prestígios literários”.
Podemos também ver o ponto de vista de Flaubert ao censurar os críticos de seu tempo:
Flaubert
“Onde se conhece uma crítica que se inquiete com a obra em si? Eles conhecem a poética? Sabem de onde resulta? Sua composição, seu estilo? E o ponto de vista do autor? Jamais. O poder da arte está em tudo constituir esteticamente pela virtude da forma. 'escrever bem o medíocre.' De tudo transformar em obra de arte pela eficácia própria da escrita. Não há assuntos belos ou vis, sendo o estilo por si só uma maneira absoluta de ver as coisas.”
O autor trabalha a forma, estilo + conhecimento da língua. Flaubert é comparado a Manet pelo tratamento inovador dado a suas obras. O quadro Le déjeuner sur l’herbe escandalizou sua época.
Le déjeuner sur l’herbe, de Édouard Manet (1832–1883). A cena campestre, com figuras vestidas ao lado de uma mulher nua, rompe convenções acadêmicas e inaugura um novo olhar sobre a pintura moderna. ▪ Fonte: Museu d’Orsay, Paris.
A reflexão sobre a literatura parece alimentar-se mais de perguntas que se renovam do que de respostas definitivas. Teriam as análises de Sartre algum fundamento? Um “trauma” de infância poderia impulsionar a criatividade? A arte é redentora; ela liberta. Se Flaubert demorou a falar e a aprender a ler, seria possível reconhecer aí um trauma formador? É conhecida sua busca pela “palavra exata”. No “gueuloir”, lia em voz alta o que escrevia para testar a musicalidade das palavras e o ritmo das frases. A leitura em voz alta revela repetições e falhas que o olhar, por vezes, não percebe. O autor primou pelo estilo e concebeu a forma como instrumento de inovação. Essa exigência rigorosa de qualidade na escrita poderia traduzir um impulso de autossuperação? Não por acaso, Flaubert acabou reconhecido como o pai do romance moderno do século XIX.
Flaubert na visão de outros escritores
Flaubert também surpreende outros escritores, que se interrogam sobre a sua obra. Henry James, a seu respeito, observa:
“A vida de Flaubert é quase exclusivamente a história de sua dedicação à literatura. Ele nasceu romancista,
Henry James (1843–1916), escritor e crítico literário norte-americano, naturalizado britânico. Sua obra examina com sutileza os conflitos morais e a vida interior dos personagens. ▪ Fonte: Wikimedia
viveu e morreu romancista. Foi um devoto da causa.”
“Ele tinha muitas facetas estranhas, mas a mais estranha de todas era a sua dificuldade em relação ao trabalho, registrada em cartas. O que nos levaria a esperar resultados muito insignificantes, e encontrar nele uma ausência de dom, pela falta de prazer, a de não conceber uma obra com alegria. Flaubert amaldiçoa seus próprios temas, desejando não os ter escolhido. Para a nossa tribo ele representa “o romancista dos romancistas”, intenso, concentrado. Sua imaginação era enorme, apesar disso sua obra-prima não é o seu trabalho mais imaginativo. A personagem de Ema é insignificante. Em “Educação Sentimental” expressou a mentalidade romântica com extraordinária veracidade. É no pano de fundo e nos acessórios que o real do seu tema habita. Mas por que Flaubert escolheu como veículos especiais da vida que ele se propôs a descrever, tipos humanos tão inferiores? Frederic também é um personagem insignificante.”
Marcel Proust (1871–1922), escritor francês, autor de Em busca do tempo perdido. ▪ Fonte: Wikimedia
Proust o considerava o maior romancista do século XIX reconhecido como o pai da modernidade no romance pelas suas inovações na forma. Mas, seu estilo não o comove. O leitor pode compreender esse desacordo, o estilo lírico de Proust no qual a busca da beleza importa contrasta com o distanciamento de Flaubert que vê seu objeto literário voltado para a descrição minuciosa da realidade. Sobre a correspondência de Flaubert, afirma Proust:
“O que surpreende em tal mestre, é a mediocridade da sua correspondência... é impossível para nós reconhecermos as ideias de um cérebro de primeira ordem. É pela correspondência de Flaubert que ficamos desconcertados.”
Bernard Masson, ao publicar uma seleção da correspondência de Flaubert, identifica na troca de cartas entre ele e George Sand algumas das mais belas já escritas entre dois autores consagrados. A apreciação é pertinente: muitas dessas cartas revelam notável erudição e refinada reflexão sobre o fazer literário. A correspondência com Turguêniev, por sua vez, vai além do debate estético e crítico, distinguindo-se também pelo tom afetuoso e pelo encanto de uma amizade sincera entre escritores.
George Sand (1804—1876)
Ivan Turguêniev (1818—1883)
Flaubert se notabilizou pela criação do romance moderno, o realismo de suas narrativas, conhecido pelo uso do discurso indireto livre, no qual privilegia a relatividade dos pontos de vista, usando o imperfeito que serve para narrar as falas dos personagens e contar suas vidas.
Gustave Flaubert (1821–1880), escritor francês, figura central do realismo literário. Sua obra mais célebre, Madame Bovary, renovou o romance ao retratar, com olhar crítico e impessoal, a vida provinciana e as ilusões da burguesia.
Em Educação sentimental, Flaubert inspira-se em experiências pessoais, como a paixão platônica por uma amiga em Trouville, e as combina com pesquisas documentais rigorosas sobre a Revolução de 1848. Retrata a época do Segundo Império, sob Napoleão III, que se tornara imperador após exercer a presidência da Segunda República — foi o primeiro presidente da França e o último monarca do país. O distanciamento adotado pelo autor produz um relato minucioso e preciso do período, a ponto de servir de referência a historiadores. Com realismo, o romance aborda a desilusão de uma geração por meio do percurso de Frédéric Moreau. Além do testemunho histórico de uma sociedade em transformação, marcada por abalos políticos e sociais, a obra formula uma crítica ao idealismo romântico, narrando o fracasso sentimental e profissional de toda uma geração.
Um dos encantos de Educação sentimental está na pintura dos costumes parisienses da época: cenas de compras, o baile público na Ilha de Saint-Louis, os hábitos e as convenções de diferentes meios sociais.