Se tu te dispões a fazer alguma coisa que faças de bom grado.
De nada adianta fazer algo, que deveria ser voluntário, contra a própria vontade. Se estás chateado, não precisas transformar a chateação em mau humor.
É lícito chatear-se, pois a vida não é um caminho suave e indolor, mas a transformação da chateação em mau humor imputa a ti mesmo e ao outro um peso extra à vida e àquilo que temos de fazer.
Decifração de gotas
A nuvem escreveu com água e "enchuvou" a janela
frases aleatórias pingadas nas telhas
ao longe, embaços desuniformam pessoas
e o mundo antecipa a noite em pleno dia
avante decifrações ditas pelas meras gotículas
que em código relata: não é tempo ainda de invernada
mas é bem-vinda a quase chuva inesperada
dota clima diferente por estas temporadas
Às vezes sou toda ouvidos... falo isso literalmente, às vezes, gosto de esquecer os outros sentidos para ouvir os sons da vida que passam desapercebidos num falso silêncio.
Gosto de fechar os olhos e escutar, o som do vento que uiva passando pelas frestas das janelas, ao longe o barulho do motor de um carro que arranca, apurando mais o ouvido , ouço uma serenata de gatos que se acasalam. Aprofundando mais ainda o sentido, dá para ouvir o som de grilos que cricrilam, saudando a Lua no céu.
Há exatos vinte anos, eu, com 60, ao me ver prestes a participar — sob o sol do sertão ao redor de Monteiro, a 300 km de João Pessoa — das filmagens do curta A Canga, de Marcus Vilar, baseado em trecho de meu livro com o mesmo nome, senti que o velho e sedentário escritor burguês tinha que se preparar... fisicamente... para ser o ancião camponês acostumado ao trabalho duro do arado e enxada.
Tive a oportunidade de trabalhar e viver cinco anos na Colômbia, quase dois no México e aproximadamente quatro anos no Peru. Isso aumentou a chance que tive de poder ler no original muitas obras de famosos escritores, a exemplo de vários livros do Gabriel García Márquez (Gabo), o excelente “El labirinto de la soledad”, de Octavio Paz, mostrando as idiossincrasias do povo mexicano, e muito mais livros do laureado Mario Vargas Llosa, de quem sou fã incondicional.
Apesar de ter-me filiado à corrente filosófica do nadismo, ainda não consegui alcançar o último e mais importante dos seus objetivos. Já deixei de fazer qualquer coisa, consegui não me preocupar mais com grana, política ou esportes. Só não consegui ainda deixar de pensar. A óbvia consequência é que continuo tendo sempre ideias geniais. Quase diariamente penso em soluções incríveis para todo tipo de problema. Um exemplo simples; no começo da semana imaginei que seria muito importante se pudéssemos ter extensões em nossos aparelhos celulares, como havia antigamente nas linhas telefônicas fixas.
Ele acordou e decidiu fazer tudo diferente. Desde jovem era mal humorado, com o tempo foi se tornando grosseiro, intolerante, desconfiado, arrogante, egoísta, chato e rancoroso. Suas escolhas e o jeito de encarar a vida o transformaram num homem triste, isolado, mal amado, mal sucedido, embrutecido e angustiado.
Era uma segunda-feira, justamente o dia da semana que mais o enervava. Voltar ao trabalho, encontrar pessoas, cumprir obrigações, enfrentar o trânsito...
Solha não se inscreve entre aqueles eruditos que só fazem acumular conhecimentos e cuja memória prodigiosa retém o que os outros dizem, mas, em contrapartida, nada acrescentam ao que leem. Quando muito, parafraseiam, embora ludibriem e impressionem os incautos.
Solha, atento sobre o que os outros dizem, sempre teve o que dizer. E o disse quer na ficção, quer na poesia, como também na condição de artista plástico, de dramaturgo e ator da melhor cepa. É um multimídia cujas mil e uma atividades se ajudam mutuamente,
emprestando umas às outras as ferramentas necessárias à consecução de uma obra já definitiva. E olhem que eu sempre nutri um certo ranço preconceituoso com relação àqueles que desejam açambarcar o mundo com as pernas. Ou seja, os que não se satisfazem em ser tão somente ficcionistas e desejam ser poetas; os que ambicionam não só ser poetas como também artistas plásticos...
Acompanho Solha desde a época em que estreou com um romance amadurecido, inovador, prêmio Fernando Chinaglia: “Israel Rêmora ou O Sacrifício das fêmeas”. E desde “Trigal com corvos”, livro de poemas sobre o qual escrevi um texto em que, entre outras coisas, observei:
“(...) é um épico da alma. E conquanto possa soar paradoxal, contraditório, essa definição diz bem do espírito que rege esse grande poema: o acúmulo de informações enciclopédicas, fruto de muitas leituras submetidas ao crivo de um eu agônico. Tão agônico que, a exemplo de Van Gogh diante dos trigais, tudo em que toca abandona o seu estado de repouso para atingir um grau de ebulição elevado à milésima potência”.
Com “1/6 de laranjas mecânicas, bananas de dinamite”, lançamento recente da Arribaçã, Cajazeiras, 2021, Solha continua escrevendo sob a égide do inconformismo, estabelecendo cotejos entre homens, seres, coisas, fatos históricos etc., na medida em que os retira do seu imobilismo aparente para emprestar-lhes outras dimensões e outros significados. E escreve ainda que tudo está fadado à repetição, quer como farsa, quer como tragédia, além de preconizar no divertimento proporcionado pela comédia, uma possível advertência de que algo de grave está para acontecer: “Demarque-se, / portanto, / o que disse Marx. / Tragédia, / às vezes, / se disfarça em farsa / e pode vir, / primeiro, / como comédia... que nos diverte / ... ao tempo em que / ... nos adverte”. É como se não existisse nada de novo sob o sol, a não ser o sol dos flashes que o eu-lírico espoca/explode trazendo à luz o “enjambement” de circunstâncias até então isoladas, que pareciam existir de forma estanque, autônoma e autossuficiente.
Em Solha, creio que as epifanias, os insights, mesmo frutos do acaso, passam posteriormente pelo crivo do poeta, que os elabora, os ordena, de modo a evitar o “tiro nas lebres de vidro / do invisível”, verso de João Cabral de Melo Neto em que ele rejeita a poesia estribada no acidental, no imprevisto, para concebê-la como produto exclusivo do trabalho consciente.
A dicção de Solha dista anos-luz da de Cabral, pois este, se não é um poeta minimalista, prima pela contenção, pela parcimônia, no que diz respeito ao emprego das palavras. De Solha, embora cultor do poema longo, não se pode dizer que ele seja um dispersivo, um perdulário, uma vez que a condensação também pode marcar presença nos poemas discursivos, a exemplo do que ocorre com os de Walt Whitman, com os de Álvaro de Campos e com “1/6 de laranjas mecânicas, bananas de dinamite”.
Detalhe do quadro "Jardim das Delícias", de W. J. Solha, inspirado na obra homônima de Hieronymus Bosch (1450—1516).
Nesse livro recém-lançado, como nos livros anteriores, o eu-lírico mescla breves e frugais passagens de sua “história” pessoal, de sua biografia do imaginário, com alguns acontecimentos que marcaram e marcam a ferro e fogo a marcha batida da humanidade rumo à barbárie. Enfim, partícipe e testemunha, o eu-lírico ciceroneia o leitor através de uma narrativa que “contém uma espécie de memória ancestral da civilização nesses tempos e nesse mundo tão pouco civilizado e atravessado, distopicamente, por uma pandemia”.
Aqui, cabe uma advertência: o leitor menos informado tem tudo para escorregar nas cascas de banana das dinamites espalhadas ao longo do poema, pois nem sempre ele dispõe de informações suficientes a respeito das personagens, dos fatos e dos contextos históricos mencionados no livro. Cumpre ao leitor, então, pesquisar.
Por outro lado, ao invés de remover minas, Solha as instala e as explode no mais íntimo, nas entranhas, nos desvãos mais profundos do leitor. E o faz através de um poema em cuja embalagem ou invólucro deveria obrigatoriamente constar – em letras garrafais! – a seguinte advertência: “cuidado, explosivo! ”, acrescido de outro alerta:
“Se vós não tendes sal-gema,
não entreis nesse poema”.
Verso do poema “Psicologia da composição”, de João Cabral de Melo Neto.
Estamos montando um museu. Insinuo-me no plural do verbo por ser dos que se batem, há anos, contra essa carência inexplicável de um mirante produzido artisticamente acomodado à sombra e ao formato de uma casa que não se avista para não lembrar uma das cicatrizes mais arraigadas da nossa história, a de 1930.
Museu por si mesma, a casa está pronta, restaurada, e me foi dado ingressar e ver por dentro o aposento onde demorou por pouco tempo a família e a intimidade do homem particular que o palácio ou a causa pública sacrificou. Assassinado há 91 anos, e desaparecida a república que invocou sua luta e seu nome para instalar-se, nenhum outro paraibano tem demorado e subido mais pronta e emocionalmente à memória do seu povo. “Ainda hoje me emociono” – palavras envelhecidas de Celso Furtado, cientista social de universais cenários, recordando impressão da infância.
Nutro enorme admiração pelo pernambucano Alceu Valença. Para mim, ele é um gênio de nossa música popular. Vem de longa data minha reverência a ele e a uma boa parte de sua obra, calcada na mistura de ritmos nordestinos, na inteligente simplicidade e beleza de suas fórmulas e no bom uso da poesia musicada.
Quando vemos alguém adotando o comportamento de quem se acha superior, excesso de soberba e arrogância, podem anotar, são pessoas que usam desse artifício para encobrir suas falhas e têm uma visão de si próprias muito acima do que são na realidade. Existe um velho ditado que diz: “quanto mais vazia a carroça, mais barulho ela faz”. Precisam chamar a atenção através da prepotência, para serem respeitadas. Assumem a postura de liderança não pela capacidade de cativar, mas pela demonstração de que possuem o poder de fazer o mal. Ao invés de serem admiradas, são temidas.
Quando meu neto Arthur tinha sete anos, ele me perguntou se estávamos no mês de oitembro. Respondi-lhe que estávamos no mês de outubro. Com uma certa condescendência, ele me disse “Mês de oitubro, vovô!”.
Arthur, na lógica correta da criança, intuiu que o vocábulo setembro está associado a sete e outubro/oitembro/oitubro a oito, assim como novembro e dezembro estão associados a nove e dez, respectivamente. Intuição certeira, embora não seja a hora de explicar-lhe que no primeiro calendário do mundo ocidental, o calendário de Rômulo, datado do século VIII a.C., esses meses, realmente, estabeleciam uma ordem de sete a dez, no ciclo anual daquele calendário de dez meses, cujo início se dava em março: março (em homenagem ao deus Marte, pai dos gêmeos Rômulo e Remo),
Desde o início de 2020, a humanidade tem sido sobressaltada pela disseminação de um vírus letal, em escala planetária, que só no Brasil
matou mais de meio milhão de pessoas. É difícil imaginar quem não tenha
sido afetado pela radicalidade de tal acontecimento. As estatísticas apontam
novas formas de “psicopatologia da vida cotidiana” e a imprensa reporta os
sintomas da neurose: sensações de medo, aflição, desespero. Irrupção de
afetos tristes que, até novembro de 2021, ainda não se dissiparam.
Da janela do meu apartamento, vejo o quintal da casa lá embaixo. Largada, ao lado da churrasqueira, uma pequena bicicleta. Sob uma árvore, uma mesa, na qual repousa um chapéu branco, possivelmente tricotado, de abas largas, ao lado de um par de luvas de cozinha. Próxima à mesa, uma antiga cadeira de balanço. Não conheço as pessoas que moram na casa, e, vistos assim, sem pertencimento, esses objetos não transcendem sua condição material, genérica; vale dizer: carecem da singularidade que só uma pessoa (um “dono”) a quem pertencessem lhes doaria. Tautologicamente: esses objetos, como os vejo agora, não passam de objetos.
A gripe é sobretudo uma agressão moral. Você sabe que ela não vai lhe matar, mas o estado a que o reduz é lastimável. Não dá para fazer selfie com o nariz vermelho e os olhos injetados. E o pior é o defluxo que dele emana (prefiro o termo “defluxo” ao escatológico “catarro”).
A medicina criou um nome pomposo para designar a gripe – influenza, que vem do italiano. É um termo simpático e que até nos dá vontade de passar pela experiência. Parece haver certa nobreza numa afecção cujo nome evoca a pátria de Dante e Michelangelo. Mas a empolgação acaba quando vêm os espirros e a febre (ou melhor, a febrícula, com esse sufixo derrisório). Seu moral começa a balançar, e o corpo pede cama.