Nonato Guedes é um jornalista completo. Ele não treme diante do papel em branco. Tem um texto primoroso e escreve como quem toma água, sem precisar reler para fazer correção. Falando, é um rio descendo a cachoeira: fluência sem arrodeios.
Às vésperas das eleições gerais mais importantes das últimas décadas, relembro momentos em que atuamos juntos, em clima de alta pressão.
Vinte e quatro de abril de 1984, votação da PEC 05/83, a conhecida Emenda Dante de Oliveira, que decidiria sobre o restabelecimento das eleições diretas para presidente da República.
1992:
eu disse à Ione que estava na hora de visitar meu pai:
- Está com 87.
E o encontrei de cama. Não aceitou que o levasse a um médico, nem que lhe trouxesse um.
Morreria uma semana depois.
Mas conversamos bastante, naquela derradeira ocasião. Em certo momento, pediu-me que lesse em voz alta, para ele, o poema “Se”, o “If” de Rudyard Kipling, que havia na tradução de Guilherme de Almeida, ... do Tesouro da Juventude – coleção que fora minha e deixara para ele.
O livro O Homem que Plantava Árvores do escritor francês Jean Giono, uma fábula sobre a preservação do meio ambiente, é composto de mensagens que inspiram a lutar pela paisagem, mesmo onde não existam vidas. Não resumirei os componentes da narrativa, mas sugiro ir atrás da obra para conhecer a bela estória que, para mim, revelado minhas habilidades de agricultor, é uma lição de vida. Apenas confesso se tratar de um solitário homem que transforma uma área desértica em aprazível reserva florestal, anos depois a floresta traz água e chega o desenvolvimento.
Colírio que tece o dia
Olhos cítricos, preguiçosos, em pelo de mel,
um deixar-se estar na paz dos meninos de Liverpool
(o que não se percebe é a arte dos felinos)
((Na redoma do que se denomina casa,
tem um humano que me serve
e eu lhe devolvo a percepção do sublime arbítrio ))
E os Beatles, são um retrato dentro da vida que se persegue no
tardar dos dias,
Um algo que pulsa e cintila os tons do que se propõe eterno.
As calçadas engarrafadas parecem que nunca terminam em dias de meio de semana. Pernas, placas, carros, passos aglomeram-se, esbarram-se, confrontam-se, esticam-se, atraem-se e desconectam-se a todo momento. São microencontros pela cidade a perder-se sem sentidos em manhãs e tardes quentes. São desencontros à procura do que nem sabe ao certo em noites de temperatura amena.
Uma revista “Visão” velha de 1978, num quartinho que poderíamos chamar de hemeroteca da Academia. Nada se perde naquela Casa! Pena que seus letrados sócios não façam de suas salas e demais cômodos de feição sempre familiar o que os saudosos sócios do Cabo Branco faziam da sua sede central.
Clarice e Lisete pareciam ter vindo ao mundo para ser amigas. Conheceram-se ainda meninas; mal uma bateu os olhos na outra, sentiu o que se poderia chamar “lampejo de afinidade”.
Assistiam às aulas em cadeiras vizinhas, e nos intervalos não se despregavam. Tinham a mesma opinião sobre os professores e os colegas, que pareciam tão diferentes delas! A amizade as colocava num mundo à parte, onde não havia rusgas nem ressentimentos.
Já escrevi sobre ele umas poucas linhas tempos atrás. E agora ele volta, provando sua permanência, sua eternidade, até diria. Refiro-me a Custódio, personagem do romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis, dono de uma confeitaria no Catete do século XIX, que foi consultar seu vizinho, o Conselheiro Aires, diplomata aposentado, sobre assunto grave e urgente: uma tabuleta que mandara pintar para colocar na fachada de seu estabelecimento. A trama é conhecida, mas vale a pena rememorá-la mais uma vez.
Dona Aparecidinha morava nos arredores num daqueles vilarejos com pose de cidade, um povoamento com menos de cinco mil almas. Vocês sabem como são essas vilas que ganharam autonomia e já botam a maior banca por terem CEP, agência da Caixa, pracinha com coreto que serve de palanque em ano de eleição, Posto de Saúde, três ruas paralelas (uma que vai, outra que vem e a principal que faz as duas coisas) e como não podia faltar uma Delegacia de Polícia. Ia me esquecendo: uma Escola de Ensino Fundamental Fulano de Tal. E para por aí vai. Foi nessa localidade que se deu o causo. Mas para isso vamos falar um pouco de Dona Aparecidinha.
Tenho um diário. São minhas “anotações existenciais”. Volta e meia, ele me “surpreende” com histórias que mexem com a minha emoção. Vejam o que escrevi no dia 16 de maio do ano 2000:
A velha Gameleira do Róger, que ficava na confluência das avenidas Juiz Gama e Melo e Dom Vital, tombou ontem, numa tarde chuvosa de maio. Numa última gentileza com os vizinhos, tombou para o vazio, para o eixo da Rua D. Vital, não causando dano a nenhuma residência.
Durante os mais de 20 anos que morei com minha família no bairro, a gameleira foi a minha segunda casa. No seu imenso tronco, que dava bons assentos, e na sua copa, vivi belos momentos de minha existência.
Na gameleira fiz poemas, leituras e amizades. Ela foi testemunha de alguns dos meus amores secretos. Do alto da árvore, escondido de tudo e de todos, usando mímica, “namorava” com uma garota das imediações, meu primeiro amor.
Roberto Coutinho, um dos frequentadores assíduos da gameleira, me deu a notícia aos prantos.
Na foto, feita em 1997, três anos antes da gameleira desabar, estamos eu, o saudoso Mário Teixeira (já meio adoentado, de cabeça baixa, com um pequeno cipó e boné na mão) e o amigo Roberto Coutinho (à direita), ambos já falecidos. O primeiro à esquerda, nas minhas costas, é um morador mais recente do bairro, cujo nome, infelizmente, não me recordo.
Para Ferreira Gullar, Vinícius de Moraes “realizou o sonho de todo poeta: chegar ao povo sem mediação”. Carlos Drummond de Andrade pensava da mesma forma:
“Vinícius realizou a figura mais exata de poeta que já vi na minha vida [...] poeta em livro, música e poeta na vida […] foi aquele que conseguiu chegar mais perto do povo, a canção que toca todo mundo, seja classe média ou povão”.
A quinta sinfonia de Gustav Mahler bem expressa a turbulenta alma de um artista. Tudo nela fala dos paradoxos emocionais de Mahler e da maioria de nós, os que fazemos da arte o nosso pão e o nosso refúgio.
Mahler escreveu sua quinta sinfonia durante os verões de 1901 e 1902. Em fevereiro de 1901, ele havia sofrido uma grande hemorragia que quase lhe custou a vida. O compositor passou um longo tempo se recuperando em sua vila à beira de um lago no sul da Áustria.
Quando pensei em você, lhe conhecendo tão pouco, imaginei a quantidade de pessoas que compunha a sua soma.
Nós nunca somos um só, um todo, algo bem definido. E te vi uma multiplicidade de eventos, de acontecimentos que a moldaram e assim sendo distante de algo monolítico, coeso, apesar de sua rica e inegável inteligência, o que portanto, estaria mais próxima de ser você.
Sou dos maiores defensores das edições anotadas. Livros, os importantes, sobretudo, devem merecer notas de comentadores, que sirvam ao leitor e ao estudioso. Tenho visto, contudo, muitas edições anotadas que parecem não conhecer o sentido do que devem esclarecer, relegando o que deve ser a essência das notas: uma mão dupla, em que o esclarecimento do termo ou da expressão teria um movimento externo, em direção ao leitor, e a sua contextualização, num movimento que a leva de volta para dentro do texto. Infelizmente, nem sempre funciona dessa maneira. Em muitos dos casos, há um movimento único, de explicação do termo, esquecendo da importância que é o retorno da nota ao texto. Constato, além disso, que nem sempre há um critério que norteie a necessidade das notas.
A tristeza é um tipo de tatuagem. Nunca mais sai da pele. Não impede a alegria, mas fica por lá. Impregnada com suas formas e cores. A tristeza, assim como a tatuagem, nasce com o nosso consentimento. Nunca existe um culpado. A nossa tristeza apenas revela a autonomia do acaso. Geralmente é fruto de uma sedução estremecida ou de um equívoco só nosso. Por isso as alegrias podem até sobrepor a tristeza como a espuma e a água podem sobrepor momentaneamente a tatuagem. Mesmo que a tatuagem permaneça inalterada.