Meu avô se chamava Samuel Furtado e morava numa casa simples, ladeada com a nossa, na praça Barão do Rio Branco, que virou Cláudio Furtado...

Esperanças e incertezas

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Meu avô se chamava Samuel Furtado e morava numa casa simples, ladeada com a nossa, na praça Barão do Rio Branco, que virou Cláudio Furtado. Era alto, forte, alvo e tinha a cabeça branca.
Também era conhecido pela generosidade e o pequeno comércio que possuía: uma bodega situada no famoso beco de Raja.

Todas as manhãs, depois do café, botava camisa de botão, chapéu de aba e gritava docemente: “Estão prontos, meninos?” Os meninos eram eu e meu irmão, Show Fialho. Resmungava que estava atrasado por nossa conta, mas sabíamos que sua voz não tinha força porque trazia riso. O tempo era 1972, pois o vento, misturado ao gemido de um motor de agave, chegava com o som de um dos maiores sucessos do momento: A Montanha, de Roberto Carlos.

Estendia suas mãos grandes para segurar as nossas, e lá íamos nós, ele feliz e displicente, e nós agoniados com seus passos lentos. A primeira parada era em Jocão, um vendedor de verduras que ficava na esquina.

— “Bora vô!”

Ele se despedia, mas em vez de tocar para o nosso destino, atravessava a praça para falar com Belinha, comerciante muito simpática e antiga, famosa por vender cigarros avulsos, entregues ao freguês por um concriz criado solto na mercearia e que, a pedido, também cantava trechos do hino nacional.

Depois nos sentíamos perdidos porque, vizinho, ficava a barbearia de Benedito Alves, e ali estavam o Diário de Pernambuco e seus amigos, entre eles João Vino, Gentil Palmeira, Jeremias Venâncio e Bibi Barbosa. Ficava proseando enquanto voltávamos para nos encantar com o passarinho e um papagaio que dizia: “Belinha, tem gente!” — sempre que chegava alguém.

Depois de muita insistência nos dava as chaves. “Tome, vão abrindo que já chego.” Ficávamos radiantes porque a posse das chaves era tudo para nós, que tínhamos apenas sete e oito anos de idade.

Descíamos a rua Estreita rodando o chaveiro no indicador - cada um levava um pedaço - num orgulho de quem já era bem crescido.

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A bodega era modesta e pouco sortida, tinha uma pequena variedade de bebidas, frutas, queijos, pães e sequilhos. Mas a maior atração do estabelecimento era um banco onde reunia meia dúzia de amigos, entre eles Miguel de Almeida, irmão de Zé Américo.

Muitos pediam explicações sobre assuntos diversos que meu avô dominava bem, como ditadura, governo Kennedy e a guerra do Vietnã.

Ele jamais teve grandes pretensões na vida, nem se preocupava imitar os ícones da época nem os líderes políticos locais que lhe batiam à porta em busca dos votos da família numerosa. A leitura lhe bastava, parentes e amigos completavam a vida sossegada numa Cuité arredia e insular, separada do resto do mundo.

Certa manhã estava na barbearia e já se levantava para sair quando ouviu um “ Tá cedo, Samuel! “ — dito pelo barbeiro Benedito Alves. Meu avô endireitou a camisa e retrucou: “ Preciso abrir a bodega senão não tenho como criar os filhos!”. Foi quando João Vino interveio, com as mãos apoiadas na bengala: “ Já é quase meio dia, Samuel. É melhor almoçarmos.”

Minha avó se chamava Eutália e morreu um ano antes de eu nascer. Inverso e complemento do meu avô, era uma mulher contida, conscienciosa, de olhar ofensivo, embora tivesse a alma luminosa, como o sol que via inundar de luz o verde da serra de Cuité.

Dona Eutália era conhecida pela determinação e a mania de sair em defesa dos mais pobres. Certa vez, vendo-se insatisfeita com a postura elitista dos organizadores de um bloco carnavalesco nos anos 50, o “ Só vai quem pode “, arrumou adereços, comprou tecidos, foi pra máquina de costura. Fez fantasias e estandartes, e criou o “Quem não pode também brinca.”

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Nos meses de inverno as manhãs pareciam eternas, as tardes também pareciam eternas, a vida parecia mais eterna ainda. E foi num desses dias que a chuva desabou fazendo a torrente descer pelas ruas, alagando becos e quintais, deixando tudo lamacento e intransponível. Quando o rouxinol anunciou a manhã de domingo e os sinos da Matriz de Nossa Senhora das Mercês anunciaram a primeira missa, seus filhos botaram roupa de banho para aproveitar a água do tanque.

Minha avó tinha saído para rezar. Chegou em casa e se deparou com os filhos tomando banho dentro do tanque que servia de reserva. Seus olhos deram uma expressão de censura que fez paralisar até mesmo o silêncio. As crianças remeteram a culpa ao pai, que autorizou a “farra do tanque”.

— Samuel, está certo autorizá-los a acabar a água?

— Olhe para cima, está escuro e vai chover forte. Amanhã, se Deus quiser, o tanque estará cheio outra vez.

— Ensinando seus filhos a jogarem fora tudo que têm, vão crescer sem o senso do limite e vão viver de esperanças e incertezas, e amanhã serão pobres como nós. Não quero isso para eles.

Minha avó entrou e foi cuidar do almoço. Na manhã seguinte não choveu, como ele esperava. As nuvens encobriram o sol, trouxeram o rouxinol, esperanças para ele, incertezas para ela.

Naquela semana toda a água que se viu brotar saiu dos olhos de minha avó. Sua tristeza refletia a dúvida do futuro dos filhos. Meu avô continuou cheio de esperanças; ela, cheia de incertezas.


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  1. BRAVO ...Célio Furtado...boas lembranças néeee!!!
    Paulo Roberto Rocha

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  2. Texto maravilhoso! Narrativas claras, permeadas de boas descrições, que nos fazem ver as cenas! Causa-nos a impressão de estarmos em Cuité, revendo lugares que frequentamos e conhecemos. Parabéns, Célio! Você é um grande escritor!

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  3. Texto maravilhoso! Narrativas claras, permeadas de boas descrições, que nos fazem ver as cenas! Causa-nos a impressão de estarmos em Cuité, revendo lugares que frequentamos e conhecemos. Parabéns, Célio! Você é um grande escritor!

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