O filme Deus e o Diabo na Terra do Sol , do cineasta baiano Glauber Rocha, é considerado um dos grandes momentos alcançados pelo cinema do...

Sérgio Ricardo: um artista de muitas artes

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O filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, do cineasta baiano Glauber Rocha, é considerado um dos grandes momentos alcançados pelo cinema do Brasil. As sequências da película são intercaladas e sobrepostas por intervenções de um cantador oculto na tela que solta sua voz, forte e cortante, em versos construídos sobre temas populares do Nordeste brasileiro, com o acompanhamento apenas de um violão.
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Um exemplo marcante disso é a música chamada “Perseguição”, apresentada nas cenas finais do filme:


“Se entrega, Corisco! Eu não me entrego não, eu não sou passarinho pra viver lá na prisão! Se entrega, Corisco! Eu não me entrego não, não me entrego ao tenente, não me entrego ao capitão, eu me entrego só na morte, de parabelo na mão!”
Quem compôs as músicas do filme — e também cantou os temas e tocou o solitário violão da trilha sonora — foi um descendente de imigrantes sírios, nascido em Marília, no interior paulista, chamado João Mansur Lutfi.

Durante os primeiros anos da sua carreira artística, o artista se apresentava com o seu nome verdadeiro, mas, ao ser contratado para trabalhar como ator em novelas de televisão, foi imposta a condição para que ele adotasse um nome artístico, porque “João Lutfi seria de difícil pronúncia”.

Em 1964, quando “Deus e o Diabo na Terra do Sol” foi lançado, Sérgio Ricardo (nome artístico que João Mansur escolhera) já era um dos principais nomes da nova música popular do país. Na contracapa do disco
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com as canções do filme, o diretor Glauber Rocha registrou que a escolha de Sérgio Ricardo para fazer a parte musical da película deveu-se à sua paixão pelas coisas nordestinas e pelo fato de que ele, na época, já havia tido uma experiência própria na direção de filmes; [ele] “sabe que a música de filme é coisa diferente: tem de ser parte da imagem, ter o ritmo da imagem, servir (servindo-se) à imagem”.

Para o historiador Rafael Rosa Hagemeyer, “o filme de Glauber é uma obra-prima do cinema novo, e a antológica sequência da morte de Corisco não seria a mesma sem a música de Sérgio”. O poeta Thiago de Mello conta que Glauber Rocha havia lhe confessado em uma conversa, quando ambos estavam no exílio, que “sem a música do Sérgio Ricardo o meu filme não seria a mesma coisa, perderia a força”.

Sérgio Ricardo, ainda criança, começou a estudar piano. Muito jovem, mudou-se de Marília para São Vicente, onde trabalhou como discotecário na estação de rádio de propriedade de um tio, e começou a se apresentar como pianista. Depois, foi para o Rio de Janeiro, para completar sua formação musical em conservatório.

Já como exímio instrumentista, Sérgio Ricardo começou a tocar em boates. Conforme seu depoimento para o livro “Sérgio Ricardo: Canto Vadio”, de Eliana Pace (Imprensa Oficial/SP, 2010):

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Em uma das boates, Sérgio Ricardo substituiu Tom Jobim, que deixou o trabalho como pianista na noite para fazer arranjos em discos. Ele contava que:

“Estimulado por Tom Jobim comecei a fazer cursos de harmonia e contraponto [...] Quando comecei a entender os acordes, começaram a aparecer melodias na minha cabeça, foi aí que comecei a compor [...]”

Por essa época, Sérgio Ricardo começou, também, a cantar:

“Fui reparando, então, que cada vez que eu cantava, a boate ficava em silêncio. Gostei daquilo [...] e me transformei em cantor me acompanhando ao piano – meu cachê aumentou consideravelmente”.

Incorporado ao grupo de músicos e compositores da nascente bossa-nova, Sérgio Ricardo participou dos dois eventos emblemáticos do movimento. O primeiro deles, e que é considerado o marco inaugural da bossa-nova, a apresentação realizada, em maio de 1960,
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na Faculdade Nacional de Arquitetura, no Rio de Janeiro. Também participou do show de divulgação internacional da nova música brasileira que aconteceu, em 1962, no Carnegie Hall, em Nova York. Folha de papel, O nosso olhar e Esse mundo é meu são exemplos da fase inicial de suas composições.

Sérgio Ricardo gravou três discos, mais ou menos ligados à temática da bossa-nova, mas, no último deles, apresentou uma canção que sinalizava sua dissensão e afastamento do grupo. É o próprio Sérgio Ricardo quem comenta o assunto:

“A bossa nova foi generosa comigo adotando algumas de minhas composições românticas e alguns sambas [...] Mas não fui fiel à sua continuidade, por ambicionar outros caminhos temáticos. Fui sempre muito rebelde para me atrelar a rótulos [...] Meu samba ‘Zelão’ foi um dos motivos pelos quais me afastei do grupo da Bossa Nova, porque a música falava de morro, tema que não interessava ao clubinho”.

Zelão iniciava uma vertente de canções com crítica social, que passaram a ser chamadas músicas “de protesto”, e que teriam em Sérgio Ricardo um dos seus principais autores.

A influência da música de Sérgio Ricardo para os novos compositores que surgiram depois da bossa-nova é expressa por Chico Buarque:

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“Quando apareceu a bossa nova, eu reneguei o que havia antes. E o Sérgio Ricardo além de fazer parte do movimento, fazia aquelas músicas um pouco modernistas. Músicas sem rima. Eu adorava aquilo. Além disso, ele foi um dos primeiros a começar a fazer músicas de movimento social como ‘Zelão’. ‘Pedro Pedreiro’ tem um pouquinho a ver com isso. Tudo tem a ver com o Sérgio Ricardo nessa minha fase primeira certamente."

Apesar de já estar firmado, naquela época, como cantor, instrumentista e compositor, Sérgio Ricardo enveredou, também, por trabalhos em emissoras de televisão, inicialmente como ator de novelas e, depois, escrevendo roteiros, fazendo os cenários, a produção, direção e a apresentação de programas. Essa experiência lhe possibilitou o conhecimento necessário para que ele incursionasse em outra atividade artística, a de roteirista e diretor de cinema. Seu primeiro filme, o curta-metragem O Menino da Calça Branca, foi premiado no Festival de Cinema de São Francisco (Estados Unidos, 1962).

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Foi por essa época que Sérgio Ricardo conheceu Glauber Rocha, de quem recebeu o convite para musicar o filme “Deus e Diabo na Terra do Sol”. Sérgio também foi encarregado da trilha sonora de “Terra em Transe”, outro filme de Glauber.

Sérgio Ricardo continuou dirigindo filmes dos quais se destacam “Esse Mundo É Meu”, “Juliana do Amor Perdido” e “A Noite do Espantalho”, em que atuaram os pernambucanos, na época desconhecidos, Alceu Valença e Geraldo Azevedo.

A partir do golpe militar de 1964, Sérgio Ricardo assumiu uma posição de frontal oposição ao regime ditatorial que se instalara no Brasil. Por conta disso, suas músicas passaram a ser banidas do rádio e da televisão e as suas apresentações ficaram restritas a espaços alternativos e a shows realizados em universidades.

Sérgio Ricardo foi um dos artistas mais perseguidos pela censura imposta pelo regime militar, como se pode observar na conclusão de um informe sobre ele com o carimbo “confidencial”, elaborado pelo famigerado SNI — Serviço Nacional de Informações, documento que foi liberado para consulta em 2016, pelo Arquivo Nacional:


“Nominado possui extenso prontuário sobre sua atuação artística contendo, ainda, depoimentos sobre suas composições e sentido que dá às mesmas [...] sempre ressaltando que a censura o conhece sobejamente”.

Esta situação, que perdurou durante todo o regime ditatorial, levou a que o compositor tivesse seu nome praticamente esquecido. Nas suas palavras:

"Não me arrependo [de ter ficado marcado como um artista antiditadura], e faria tudo de novo se fosse preciso. O ruim é que me calaram a voz. Quando veio a abertura, meu nome já tinha sido apagado da memória do povo"

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Uma das músicas de Sérgio Ricardo mais representativas daqueles tempos sombrios é “Calabouço”, feita em homenagem ao estudante Edson Luís, assassinado em 1968 no restaurante estudantil Calabouço, em um confronto com policiais militares. O corpo do jovem foi levado, em passeata, pelos estudantes pelas ruas do Rio de Janeiro.

Em meados da década de 1960, começaram a ocorrer festivais de música popular que movimentavam o país. Em 1967, realizou-se, em São Paulo, promovido pela TV Record, o mais emblemático desses eventos e que motivou o filme Uma Noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil. A qualidade das músicas concorrentes é traduzida pelas primeiras quatro colocadas no festival: Ponteio (Edu Lobo-Capinam), Domingo no Parque (Gilberto Gil), Roda Viva (Chico Buarque) e Alegria, Alegria (Caetano Veloso).

Um episódio, ocorrido no festival de 1967, marcou, definitivamente, a imagem contestatória de Sérgio Ricardo. Ao apresentar a sua música (Beto bom de bola), que narrava a trajetória de um jogador de futebol ludibriado por dirigentes do futebol, os chamados “cartolas”, explicitamente inspirada em Garrincha, o compositor foi impedido, pelas vaias da plateia, de mostrar a canção. Inconformado com a situação, Sérgio quebrou seu violão, jogou-o para o auditório e se retirou do palco.

FESTIVAL DA MPB / 1967

Sempre envolvido com iniciativas que possibilitassem a abertura do mercado para novos compositores brasileiros, Sérgio Ricardo idealizou, em meados da década de 1970, o “Disco de Bolso”, que era um pequeno disco, acompanhado de um encarte, com apenas duas músicas, uma de um compositor já consagrado e outra de um ainda inédito.

O “Disco de Bolso” era vendido em bancas de revistas, em parceria com o semanário “O Pasquim”. A primeira edição trazia Tom Jobim, com a primeira gravação da música Águas de Março e a estreia, em disco, da parceria de João Bosco e Aldir Blanc (Agnus Sei). O “Disco de Bolso” teve apenas mais uma edição. O fechamento do “Pasquim” acabou com o projeto.

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No final da década de 1970, Sérgio Ricardo passou a morar no morro do Vidigal, onde liderou, na época, uma reação dos moradores do local contra a derrubada dos seus barracos para possibilitar a construção de um hotel de luxo na área. Esse episódio inspirou, em 2017, a última incursão de Sérgio Ricardo pelo cinema, o curta-metragem Bandeira de Retalhos. Ele dizia que:

"Aqui [no Vidigal] aprendi tudo o que se possa imaginar. Principalmente, materializar minha percepção de vida, conviver com seres simples e apreciar sua sabedoria"

Sérgio Ricardo era um artista múltiplo. Além de ator e apresentador de televisão, foi roteirista, fez trilhas e foi diretor de vários filmes. Era cantor, instrumentista e compositor. Compôs músicas para o teatro, entre as quais as da peça “O Coronel de Macambira”, do poeta pernambucano Joaquim Cardozo (uma delas, Bichos da Noite, foi incluída no premiado filme Bacurau), e as do cordel “Estória de João-Joana” de Carlos Drummond de Andrade. Além do mais, o artista publicou livros sobre a cultura brasileira, de poesias e de histórias para crianças e enveredou, também, pelas artes plásticas, fazendo esculturas e pinturas.

TELAS DE SÉRGIO RICARDO
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sergioricardo.com

Em todas as suas criações artísticas Sérgio Ricardo sempre teve a preocupação social como o foco principal da sua obra. Nas suas palavras:

“Em todas as canções, mesmo nas mais líricas, não abro mão da denúncia social, quando se faz o caso. Usei os meus instrumentos em função de uma ideia, de consciência do cidadão, e não me arrependo”. “Porque o meu negócio é o meu ser com o meu semelhante [...] amanhã quando eu subir no paraíso, eu vou ficar falando daquele mendigo pobre coitado, ninguém deu bola pra ele, coisas assim”.

Sérgio Ricardo subiu para o paraíso em julho de 2020. Acometido pela Covid-19, chegou a se curar, mas, fragilizado pela doença, não conseguiu sobreviver às sequelas deixadas pela pandemia. Tinha 88 anos.

No dia seguinte ao da sua morte, o jornalista Mario Sérgio Conti publicou, na Folha de São Paulo, a crônica “Como não era Ivan Ilitch, Sérgio Ricardo teve vida reta, limpa, ímpar”, na qual relacionava o compositor com o personagem da novela célebre de Tolstoi. Também relatava um encontro que presenciara entre Sérgio Ricardo e João Gilberto:

“Eles se conheceram nos primórdios da bossa nova, nas boates cariocas onde tocavam, e ficaram amigos pela vida toda [...] Por que João Gilberto amava Sérgio Ricardo? ‘Pela sensibilidade. Quisera eu ter a sensibilidade do Mansur para a música, para a beleza, para a vida.’”

Infelizmente, a instigante, insubmissa e refinada arte de Sérgio Ricardo, da qual a canção “Mundo velho sem porteira” é um exemplo, é praticamente desconhecida pelas novas gerações do país.


Ê mundo velho Êta mundo sem porteira Vou me levando No retão da lembranceira Minha dor é como a lenha Numa caldeira E a saudade um trem de carga Sem passageira.
SÉRGIO RICARDO HOMENAGEADO POR ROLANDO BOLDRIN

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  1. Parabéns Flavio Ramalho..gostava muito do Sérgio Ricardo!!
    Boas lembranças!!!
    Paulo Roberto Rocha

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  2. ERREI, Senhor. Onde se escreve Renato. Leia-se: Flávio Ramalho. Oxente.

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  3. Mais um resgate histórico muito interessante na pena de Flávio Brito. Infelizmente, para mim e a minha geração Sérgio Ricardo pràticamente se resumia ao gesto de quebrar o violão e atirá-lo na platéia. Foi só o que ficou.
    Com a pesquisa realizada por Flávio, tomo conhecimento de uma personalidade fascinante, com as mesmas preocupações sociais que eu tenho até hoje.
    Obrigado, Flávio, os seus textos praticam a justiça histórica para com aqueles que você pesquisa.
    Parabens!

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  4. Com essa pesquisa Flávio Brito faz justiça para com Sergio Ricardo. Para a minha geração trata-se de um personagem desconhecido, que foi injustamente marcado pelo gesto de sua indignação com a atitude injusta da platéia contra a sua música, Bebeto Bom de Bola.
    Só nos lembramos daquele cantor que atirou um violão quebrado na platéia.
    Parabens, Flávio, por melhorar os meus conhecimentos

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