O sol paira sobre o mar profundamente azul da baía de Monterey. Algas dançam com a maré perto de um caiaque amarelo. Tudo brilha junto, nu...

Tudo guardado entre páginas

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O sol paira sobre o mar profundamente azul da baía de Monterey. Algas dançam com a maré perto de um caiaque amarelo. Tudo brilha junto, numa sinfonia inesperada. Uma criança descalça, chapeuzinho à cabeça, cata conchas na areia. O pai a acompanha, com um olhar enternecido afivelado na cara. Tenho vontade de entender sânscrito, de desinventar feiuras, de falar a língua dos pássaros. A impossibilidade me empurra para a filosofia.

Em algum lugar do mundo, neste exato instante, alguém geme de dor. Não muito longe, uma piada faz outro rir, a ponto de lhe saírem lágrimas dos olhos. Em Dharamsala, o Dalai Lama deve estar pensando em seu reino perdido. No Tibet já se vende quinquilharias e há burocratas. Do Oiapoque a Londres, crianças nascem; a terra cobre o corpo de seres amados, e os lamentos são cobertos por risos. Tudo junto, simultâneo, embora o dia luminoso em Monterey tente desmentir a realidade e me fazer crer que naquele instante há apenas felicidade e calma – uma súbita pausa para que o planeta respire.
Em seguida tudo volta a girar, como sempre foi. Culpa é a primeira coisa que sinto após o instante de respiro. Culpa, sim. Há um conto não finalizado e eu vim olhar o mar. Antes cozinhei, fui buscar as encomendas e ao abri-las furei o dedo com a ponta da tesoura. Intenso, dolorido conto. Nada nele combina com os dourados e azuis de Monterey.

As cores de Monterey são avassaladoras. A cidade, para mim, é sinônimo de John Steinbeck. Consigo ver o escritor olhando para essa mesma paisagem, ouvindo as ondas embalarem peixes e algas. Steinbeck via coisas além dos sentidos comuns. Depois as aprisionava em seus livros. Ali estão a vida dos vagabundos desta cidade, os mistérios ocultos sob as pálpebras de um velho chinês, a ânsia da dona de casa que queria cortinas numa casa sem janelas. Só ele bebeu a vida nas garrafas do Bear Flag e notou que as prostitutas dormiam de graça com o Doc, ao som de um gramofone que tocava Bach (ou será que era Beethoven?). Os pescadores, os barcos, o cheiro das sardinhas, as latas – tudo guardado entre as páginas.

O que me atrai em Steinbeck – além de sua literatura – é sentir nos textos uma palpável honestidade e perceber o homem bom que ele buscava ser. Esse mesmo homem – tão vigoroso em sua escrita, capaz de falar de um universo profundamente masculino – é também o que revela uma sensibilidade sem par. Não esqueço de suas palavras numa carta ao amigo Pat, examinando o que aprendeu com a passagem do tempo: “Estamos mais maduros, sábios, perceptivos, gentis?”. Frase simples, direta, centenas de vezes dita. Mas sempre me causa um calafrio.

Por curiosidade, abro o livro que comprei esta semana. Contém diários e cartas de Steinbeck do tempo em que ele estava escrevendo A Leste do Eden, ainda hoje o meu livro preferido. O que teria registrado 70 anos atrás, no dia 3 de julho de 1951? Nas páginas amarelas do livro (comprei um usado), Steinbeck escreve a Pat sobre o velho problema dos escritores: as estratégias de procrastinação e suas razões fundas: “Vou ficar em casa e trabalhar. Talvez terminar esse capítulo, se não o acabar hoje. Estou nervoso sobre o trabalho. Levantei e fiz outras coisas que pareciam precisar ser feitas. E acabei por fazer um corte no dedo que segura o lápis. Em geral isso é uma prova do medo do trabalho. Não sei porque acontece, pois sinto que estou bem preparado para esse capítulo. Talvez se eu parar de falar e apenas começar, tudo dará certo. Vou fazer isso agora”. Rio da coincidência.

Há animais marinhos grudados nos pilares da ponte. Steinbeck viu outros, iguais. Estou nos fundos do laboratório de Doc. Tudo quieto, silencioso. Se dinheiro tivesse, ali faria um centro literário e à tarde veria o mar.

Fecho o livro em silêncio. Amanhã, domingo, é melhor não pegar as estradas cheias (outro bom conselho de Steinbeck). O trabalho me espera. É um capítulo que igualmente temo, mas para o qual estou bem preparada. Talvez se eu parar de falar e começar a escrever, tudo dê certo. Vou fazer isso agora.

Dançam as algas na água, o cheiro do sal me toma sem pressa. O dia morre de um jeito tão bonito que ninguém duvida que as estrelas estão todas quietas, espiando atrás da mantilha do céu.

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