Um vendaval soprou na vida dele. Começou a rever, no reflexo e reflexão da sua maior intimidade dentro da qual somente Deus tinha acesso, ...

Vendaval

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Um vendaval soprou na vida dele. Começou a rever, no reflexo e reflexão da sua maior intimidade dentro da qual somente Deus tinha acesso, que tudo se desata. Ficava observando as perdas e ganhos. Os meninos soltavam pipas (ainda sem o uso do cerol assassino), os papagaios devassando em cores variadas no céu claro. Ele contava histórias de lobisomem e o dinheiro guardado na carteira. Tudo se desata: antes, ainda criança, jovem, moço, despedia os aconselhamentos da avó.

Abraçava a velhinha, beijava-lhe a face amassada, sentia-se livre dos pais em cujo túmulo ele depositava, em Finados, alguns botões de flores ordinárias, balbuciava apressado alguns sotaques de reza decorada e saía mundo afora. Um crescimento de espaço para quem somente tinha a dar satisfação a uma mulherzinha encarquilhada,
entrevada, puxando a bengala de apoio, sem outra função senão passar o café donzelo, arrumar o pirão, rodar o terço entre os dedos mastigados pelos anos.

Mas o vendaval ia chegando. Soprava vagaroso, ameaçando derrubar toda a petulância que ele tinha em viver alheio, camisa aberta ao mundo, recebendo o dinheiro da pensão da avó puxado no caixa eletrônico. Foi enxergando diferente. Precisava trabalhar, abandonar aquela maneira folgada de viver, afinal, tudo se desata. Chegou da rua, altas horas, e não escutou o ronco da avó. Ela estava perdida dentro de casa, desconhecendo tudo e a todos, excitadíssima, dizendo que havia perdido o trem.

E agora, como convencê-la da realidade? Levou-a ao hospital, poucos dias após, o túmulo dos pais a recebia como nova habitante. O vento continuava soprando, agora com mais força. Estava sozinho. Não tinha mais ninguém. Lembrou-se de um amigo que, segundo se comentava, era rico empresário, pelo sul do país. Conseguiu juntar as últimas cédulas da carteira e se foi a encontrá-lo. Um terraço ornamentado por cerâmicas em quadrados azuis, uma rede estendida de canto a canto. O ricaço o recebeu, mandou que sentasse, mas continuou a folhear o jornal, calado, obtuso.

Depois se soergueu vagaroso, bocejando algum incômodo pela presença daquela inesperada e até indesejável visita. Escutou a notícia do falecimento da velha, a situação de penúria em que ficara o suplicante, mas sempre alheio, calado, deixando-se a fitar o bonito jardim. Mandou preparar uma xícara de café, suspirou profundo, e se voltou, subitamente, para o visitante, com ar zombeteiro: “— Não estudou porque não quis. Não posso ajudar preguiçoso!”

O vento soprava forte, arrancando arbustos, derrubando postes. Aonde iria agora? Agora era uma rua sem fim, um destino vazio, uma possibilidade se esvaindo em seu peito atordoado. Postou-se numa esquina, a cidade grande, gente desconhecida e começou a chorar. Ninguém o notava. Havia séria previsão de tempestade. Tudo deslizava. Queria, apenas, um emprego de carregador no armazém do amigo que o rejeitara.

Os sinais verdes fechados. Sentia que iria cair num abismo. Foi quando olhou para o anúncio numa construção. Estavam cavando os alicerces de um edifício. Aprenderia a ser pedreiro. Sobreviveria. O vento começava a assoviar. Ele também. Uma melodia improvisada. Vazia.


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