Nas invasões de longa duração, invasores e invadidos acabam por adotar, uns dos outros, um tanto de seus costumes, suas línguas e suas almas. A história tem uma enormidade desses casos. Há quem garanta, por exemplo, que a Guerra dos Cem Anos levou a França a incorporar manifestações dos ingleses como a quadrilha, dança de salão assim denominada porque inicialmente composta por quatro casais. E em espaços quadrados, acrescem outros pesquisadores. Estamos a falar do Século 13 e de narrativas disseminadas, hoje em dia, desde os centros acadêmicos até as páginas de jornais e revistas.
Quadrille, dança de salão praticada nos palácios europeus no século XIX. ▪ Wikimedia
Todos sabemos de gente que se programou para acompanhar, via tevê, o casamento do príncipe Charles com a princesa Diana. E se indignou quando o paquistanês Hasnat Khan e outros mais tiveram a moça.
Diana Spencer (1961—1997)
Mas quero é contar da quadrilha que incorporou a safona, o zabumba, o triângulo e, ao derredor, fogueiras, canjicas e pamonhas. Desejo é falar do folguedo em que se envolveram gerações e gerações de brasileiros – majoritariamente, nordestinos – com suas roupas remendadas, seus chapéus e tranças, suas sardas de tinta e seus dentes pretos, uma caricatura dos caipiras que acolheram a dança desprezada pela elite que tangeu Pedro II e sua gente. E quero lastimar a industrialização crescente disso tudo em palcos imensos instalados nos espaços públicos para os concursos e premiações ao cabo de espetáculos caros e meramente contemplativos.
O bom arraial era aquele que nos permitia a dança com gente da nossa rua e do nosso agrado. E que vinha com os enredos de casamento aos quais não faltavam o padre, os pais da noiva e a polícia. Era o que arremedava comandos em francês. Anavantu... E íamos todos nós em duas fileiras, uma diante da outra. Anarriê... E recuávamos.
As expressões mais compridas e mais complexas vinham em português mesmo: “Caminho da roça”... Era quando os pares se desfaziam a fim de formar fila única, ele à frente dela. “Olha a chuva”... Ouvido isso, os participantes em círculo mudavam de direção, em meia volta, com as mãos sobre a cabeça, à guisa de proteção. “Já passou”... Outra meia volta, gritos de alegria e nova mudança de rumo. “Cumprimento”... Damas e cavalheiros então separavam-se, deslocavam-se em direção a um dos lados e, um por vez, cumprimentavam seu par com uma leve inclinação do tronco e da cabeça. O “olha o túnel”, “balancê”, “olha a cobra” – momento de gritos de medo e retrocessos – compunham outros movimentos.
Estaria longe e formando outro par a pessoa em que você mantinha os olhos? Se tal situação ocorresse, você não deveria se preocupar porque, tanto quanto a roda da vida, a daquelas quadrilhas também tinham seus giros. Logo, você a teria nos braços.
Meus diletos contemporâneos, vocês sentem saudade daquelas escapadelas até à beira da fogueira a fim de provar lábios de cravo e canela? Dividir espigas de milho e queijo igualmente assado?
GD'Art
Não me dei ao trabalho de comprar bacia e levar água à fogueira a fim de nela ver o reflexo daquela que a boa sorte me traria. A moça que levei ao altar tomou um trem em Nova Cruz, Rio Grande do Norte, para desembarcar na minha calçada, em meados de 1970, três casas depois da minha. Nunca mais nos separamos. E aqueles não eram dias dos santos de junho. Estavam mais para os de Momo. Mas sei de facas enterradas, às vésperas, no tronco da bananeira de onde sairiam, raiado o sol de São João, com as iniciais do futuro cônjuge feitas de seivas e nódoas. E sei de modinhas acerca de gente magoada. Até estas me fazem falta.
Vocês hão de lembrar desses versos: “Tem tanta fogueira, tem tanto balão, tem tanta brincadeira, todo mundo no terreiro faz adivinhação”. Os paraibanos Antonio Barros e Cecéu, criadores dessa maravilha, falam de alguém sem alegria nas noites de festa, em razão da ausência do ente amado.
Lamartine Babo nos trouxe a saborosa marchinha junina “Chegou a hora da fogueira”. Jackson nos lembrava de que “São João chegou”. “Na fogueira de São João eu quero brincar”, cantava um Luiz Gonzaga com o recado para Seu Januário: “Traga a família que nós temos o prazer de dançar com suas filhas até o dia amanhecer”. É disso tudo que sinto saudade.
Anos atrás, próximo de uma cirurgia, resolvi levar a moça de Nova Cruz até a Pirâmide de Campina Grande, para conhecer o “Maior São João do Mundo”, assim tido e havido. Juro como o locutor da Rádio Caipira, ali instalada para a programação musical dos folguedos, saudou o distinto público com um sonoríssimo “Bom Dgiaaa”... O moço era cheio de “tchis” e “dgis”. Naquele exato momento, eu não me queixei do belíssimo e bem articulado sotaque sulista. Eu reclamei foi da falta do nosso. E, é claro, da morte do São João de antigamente.