O Horácio (Vieira de Melo) do título é um paraibano que, graças ao contrabando de pau-brasil feito pelo pai, se dá ao luxo de estudar em Pádua (Itália) e na Alemanha. Mas ele não esquece as raízes, e a certa altura faz questão de enfatizar: “...a memória da minha infância ficou para sempre
Nessas andanças europeias acaba chegando à Dinamarca e, como seu homônimo shakespeariano, é encarregado por Hamlet de contar a sua história. Não apenas isso; na versão de Solha, ele comenta aspectos do enredo e supre “lacunas” deixadas pelo autor original. Afinal de contas, como reconhece meio que se justificando, “Shakespeare não foi testemunha ocular da história!”. Seus acréscimos, cheios de ironia e dotados de uma visão histórica que encoraja um novo entendimento da trama, acabam por ressaltar a grandeza da obra.
“Hamlet”, como se sabe, é uma das maiores tragédias da literatura. Centrada no tema da culpa e da vingança, a história se passa na Dinamarca e tem como protagonista o príncipe Hamlet, de luto pela morte do pai, que também tem o seu nome. A dor do príncipe é intensificada pelo casamento às pressas da sua mãe, a rainha Gertrudes, com o irmão do falecido – Claudius –, que assume o trono.
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Não cabe aqui detalhar o entrecho da peça e suas intrigas, que conduzem a outras mortes. O que pretendo ressaltar é a grandeza literária do romance, que nos conquista pela riqueza das observações sobre arte, história, religião (o autor, como é do seu feitio, faz penetrantes reparos aos relatos bíblicos), bem como pelo à-vontade com que explora o ambiente e compõe os diálogos. A descrição de determinadas espaços, ricos em detalhes convincentes, nos dá a impressão de que ele “estava lá”.
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“O cisne flutua com elegância porque não lhe vemos os pés-de-pato em pedalinho. Ao sair d’água, porém, seu desengonço é feito o de qualquer marreco. Mas nem naquele momento dramático vi Ofélia perder a graça. Não se privava dela sequer na intimidade, imaginando-se só, nua em seu quarto.”
Sendo uma reescrita, o romance de Solha transcreve discretamente passagens do original. O intuito com que faz isso é, ao mesmo tempo, paródico e lúdico; o leitor não deixa de se divertir com tais acréscimos. Um bom exemplo deles é a passagem em que Horácio intima o príncipe à vingança depois de em pensamento lamentar a sua tendência à verborreia (“Só conversa, conversa, nada mais que conversa”).
W. J. Solha partes.com.br/
— “Meu pai foi morto quando estava com os pecados florindo mais do que maio, e está penando por eles. Já o desgraçado do meu tio, quando fui abatê-lo, estava rezando!
— "E daí? – disse eu atônito
— "Daí?!!! Daí que o velhaco manda meu pai pro inferno e eu o despacho pro céu?!!!!”
A ironia, é óbvio, está em que a atitude de Claudius não o absolve do seu terrível pecado – embora não seja esse o entendimento dos que adotam uma prática meramente ritualística da religião (ou seja, a maioria). Ao aparentemente endossar o consenso do vulgo, Hamlet não deixa de reiterar o seu dilemático “ser ou não ser”.
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