A construção da narrativa em Os Miseráveis merece um estudo à parte. Um alentado estudo, diga-se de passagem, em que se contemple tamb...

Um olhar, uma centelha

miseraveis cosette marius victor hugo
A construção da narrativa em Os Miseráveis merece um estudo à parte. Um alentado estudo, diga-se de passagem, em que se contemple também o estilo de Victor Hugo, com as suas frases reiterativas e gradativas. Hugo sabe se deter em detalhes, quando lhe convém, para compor um ambiente ou para compor um perfil, e, ao mesmo tempo,
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sabe ser ágil, quando a narrativa lhe exige essa condição. O que vamos dizer é um olhar mais específico sobre um capítulo desse livro.

Comparemos rapidamente dois livros desse monumental romance, o Livro I da Segunda Parte, Cosette, e o Livro VI da Terceira Parte, Marius. O Livro I da Segunda Parte do romance intitula-se Waterloo, composto de 19 capítulos, distribuídos em 43 páginas. Já o Livro VI da Terceira Parte chama-se La conjonction de deux étoiles (A conjunção de duas estrelas), composto de 9 capítulos, com 14 páginas e meia (Les misérables. In: Oeuvres complètes, Roman II; notice et notes de Guy et Annette Rosa, Robert Laffont, Paris, 2008).

Para a narração do dia da batalha de Waterloo, por exemplo, Hugo dedica 35 páginas, duas vezes mais do que todo o Livro VI da Terceira Parte, cujo assunto aborda os quinze meses que distam da primeira visão de Cosette por Marius, no Jardin du Luxembourg, até a paixão que dele se apodera. Ainda para efeito de comparação, digamos que um único capítulo
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G. Brion, 1862
do Livro VIII – Le mauvais pauvre (O mau pobre) –, o capítulo XX, “Le guet-apens” (“A cilada”), tem 17 páginas.

Por que a diferença? A guerra, pensamos, exige uma reflexão. Sobretudo, quando se trata de um dos mais famosos e emblemáticos episódios do mundo moderno, que, acontecendo no início do século XIX, mudou o destino da Europa e do mundo – a Batalha de Waterloo. Victor Hugo tenta compreender e nos explicar os meandros daquele distante dia, em 18 de junho de 1815, que levou Napoleão à derrota, mas não sufocou a sua grandeza, nem deteve o processo de enfraquecimento da monarquia absolutista, na Europa, e o retorno, na França, à república.

A paixão, por sua vez, não precisa de ser repisada em minúcias, nem necessita de reflexão para podermos compreendê-la. Aliás, tentar compreender o que é uma paixão é absolutamente inútil. Ela acontece e se instala; dificilmente é detida, por mais esforços racionais que possam ser feitos nesse sentido. Se a guerra busca uma explicação longa e reflexiva para a vitória do Duque de Wellington, para a derrota de Napoleão Bonaparte ou para a explosão desbocada de Cambronne; se nessa batalha, centenas de canhões foram utilizados para a morte de milhares de pessoas, transformando-se
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G. Brion, 1862
em uma carnificina ocorrida em 12 horas, a paixão, outra guerra, que não encontra paralelo, só precisa de uma centelha e essa centelha é o olhar.

No primeiro encontro casual de Marius e Cosette, no Jardin du Luxembourg, o rapaz observa a moça e o velho que a acompanha, no caso Jean Valjean. Ela parece-lhe tão desengonçada, magra e feia, nos seus 13 ou 14 anos, portando um vestido mal cortado, “uma menina que não era ainda uma pessoa”, de uma insignificância tal que talvez dela saísse apenas uma promessa de belos olhos (“qui promettait peut-être d’avoir d’assez beaux yeux”, Parte III, Livro 6, Capítulo 1, p. 554). O arremate desse capítulo é simplesmente desencorajador (p. 555):

“Marius os viu assim quase todos os dias, à mesma hora, durante o primeiro ano. Ele achou o homem agradável, mas a filha bastante maçante”.
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Gravura de Os miseráveis, de Victor Hugo ▪ edição original (Lacroix, Verboeckhoven & Cie) ilustrada por Gustave Brion, 1862 ▪ Fonte: Gallica
Por motivos que o narrador não explica, Marius e Cosette só vão se reencontrar seis meses depois. No Capítulo II, apropriadamente intitulado “Fez-se a luz” (“Lux facta est”), numa clara alusão ao Gênese, tudo muda. Agora, é outra Cosette que Marius vê. Em lugar da menina maçante, uma bela moça, na flor de seus quinze anos (“En six mois, la petite fille était devenue jeune fille”, III, 6, 2, p. 556), de tal modo que o ápice dessa transformação é sintetizado no misto de beleza, sensualidade e pureza, que funde a virgem Maria e a deusa Vênus (p. 556):

“Uma cabeça que Rafael teria dado a Maria, colocada sobre um pescoço que Jean Goujon teria dado a Vênus.”

Do Capítulo I para o Capítulo II, a distância temporal é de seis meses, e os dois, Marius e Cosette, estão em abril, na primavera. Explica-se, portanto, nas entrelinhas, o fato de Marius não ter aparecido. A briga com o avô, M. Gillenormand o fez sair de casa (III, 3, 8, p. 507-511), indo morar um tempo com Courfeyrac (III, 5, 1, p. 537-538), e, em seguida, no pardieiro Gorbeau, o conhecido endereço de número 52, boulevard de l’Hôpital (III, 5, 2, p. 538-541). As condições miseráveis em que o jovem se encontrava, os estudos a que se entregara, na Faculdade de Direito, e na aprendizagem de Inglês e Alemão
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G. Brion, 1862
para ganhar algum dinheiro como tradutor (III, 4, 6, p. 534-536), tudo talvez tenha impedido os passeios durante o outono frio e o inverno mais frio ainda. Agora, para ambos, era primavera. Para ela, principalmente, o seu abril chegara (“Son avril à elle était venu”), ela recebera o pagamento da beleza pelo semestre de ausência (“La jeune fille avait touché son semestre”, p. 556).

Seus olhos se encontram no Capítulo III, “Efeito de primavera” (“Effet de printemps”); efeito de um dia esplêndido de cores e sons, com temperatura amena, num momento da narrativa em que tem sentido falar do tempo, devido à mudança que ocorrera externa e internamente, na natureza e em Marius (p. 557):

“Um dia, com o ar tépido, o Luxemburgo estava inundado de sombra e de luz, o céu estava puro como se os anjos o tivessem lavado pela manhã, os passarinhos soltavam pequenos gritos nas profundezas dos castanheiros. Marius abrira toda a sua alma à natureza, ele não pensava em nada, ele vivia e respirava, ele passou perto do banco, a moça levantou os olhos em sua direção, seus dois olhares se encontraram”.

A fusão da primavera da natureza com o reconhecimento do amor primaveril atinge certeiramente o coração de Marius, até então voltado apenas para as suas preocupações de estudante rico que, brigado com o avô, estava conhecendo o limiar da miséria (p. 557):


É a conjunção das duas estrelas, que dá nome ao Livro VI, traduzida no léxico desse curto capítulo que trata dos efeitos da natureza que se renova, renovando também os corações humanos – “a aurora no céu”,
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G. Brion, 1862
“despertar de qualquer coisa brilhante e desconhecida”, “o lampejo que ilumina”, “o raio celeste e fatal”, “uma virgem que olha como uma mulher” (p. 557).

No Capítulo IV, “Começo de um grande mal” (“Commencement d’une grande maladie”), Marius, sem perceber, passa a sofrer do mal de amor, anunciado no capítulo anterior (p. 557):

“É raro que um devaneio profundo não nasça desse olhar, lá onde ele cai. Todas as purezas e todas as canduras se encontram nesse raio celeste e fatal que, mais que as olhadelas mais bem trabalhadas das sedutoras, tem o poder mágico de fazer subitamente eclodir no fundo de uma alma essa flor sombria, cheia de perfumes e de venenos, que se chama o amor.”

Na sua indiferença inicial por Cosette, Marius observa o seu vestido mal cortado, mas não se vê a si mesmo, malvestido, com roupas velhas e amarfanhadas. A luz do amor o faz enxergar-se, e ele se veste de roupas novas, por três dias seguidos, com uma “panóplia completa”, diz o autor, como se fosse “Aníbal marchando sobre Roma” (p. 558). Totalmente atingido pelo “raio celeste e fatal”, Marius afirma para si “beleza maravilhosa” de Cosette (P. 560), e segue disposto a enfrentar essa guerra, nova para ele: o amor.

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G. Brion, 1862
É no Capítulo VI, “Feito prisioneiro” (“Fait prisonnier”), que Marius estremece (“Ela o olhou fixamente, com uma doçura pensativa que fez Marius estremecer da cabeça aos pés”), fica, a um só tempo, “ébloui”, maravilhado e aturdido (“Marius ficou aturdido diante daquelas pupilas cheias de raios e abismos”), e, finalmente, capitula, cede à beleza ideal que se compõe à sua frente. Laura e Beatriz, aos olhos de Marius, são menores, diante de Cosette, por ela sintetizar o feminino e o angelical (p. 561):

“Bela, de uma beleza simultaneamente feminina e angélica; de uma beleza completa que teria feito cantar Petrarca e ajoelhar Dante.”

Sem a necessidade de ficar remoendo a respeito de uma paixão avassaladora (“Ele estava perdidamente apaixonado”, p. 562), mas compondo de modo ritmado e progressivo o que se passa entre os dois jovens, Victor Hugo arremata todo o acontecimento, do primeiro encontro à descoberta do amor, daí para a desolação por perder de vista a amada (Capítulo IX, “Eclipse”), em magras catorze páginas e meia, que, paradoxalmente, destaca a celeridade que a paixão exige, fazendo Marius prisioneiro de Cosette (III, 6, 6, p. 562):

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G. Brion, 1862
O final do Capítulo VI é perfeito, como intermediário entre a perdição amorosa e a desolação de Marius, ao perder o contato com Cosette. Fazemos questão de reproduzi-lo, pela inquestionável definição do que é a paixão e pelo amplo e profundo significado do verbo saisir (“Tout à coup on se sent saisi”). Não há como exprimir o poder de ser pego, tomado, agarrado, aprisionado, que esse verbo carrega e que traduz o poder da paixão sobre todos as pessoas (p. 562):

“O olhar das mulheres parece com certas engrenagens tranquilas na aparência, mas formidáveis. Passamos ao seu lado todos os dias pacifica e impunemente, mas sem duvidar de nada. Há um momento em que esquecemos mesmo que essa coisa está ali. Vamos, voltamos, sonhamos, falamos, rimos. De repente, nos sentimos tomados. É o fim. A engrenagem nos prende, o olhar nos pega. Ele nos pega, não importa por onde, nem como, por uma parte qualquer do nosso pensamento que se arrastava, por uma distração que tivemos. Estamos perdidos. Seremos destruídos ali inteiramente. Um encadeamento de forças misteriosas se apodera de nós. Debatemo-nos em vão. Não há socorro humano possível. Cairemos de engrenagem em engrenagem, de angústia em angústia, de tortura em tortura,
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G. Brion, 1862
nós, nosso espírito, nossa fortuna, nosso futuro, nossa alma, e, conforme estivermos sob o poder de uma criatura má ou de um nobre coração, não sairemos dessa pavorosa máquina senão desfigurados pela vergonha ou transfigurados pela paixão.”

Na composição do Livro VI é, portanto, inegável a habilidade de Victor Hugo, construindo, passo a passo, o amor de Marius, nutrindo-se de olhares furtivos e de expedientes para se tornar invisível aos olhos de Jean Valjean. Habilidade que se traduz na oposição entre luz, no momento da descoberta da paixão, e sombra, quando Marius crê que perdeu o amor de sua vida. É nesse momento (Capítulo IX, “Eclipse”), que Marius se vai sombrio, quando não consegue ver Cosette, na rua onde ela mora, e mais ainda quando percebe que o terceiro andar, habitado por ela e o pai, se encontrava todo escuro. Jean Valjean, por precaução, tendo percebido que Marius o seguia, muda-se para a rua Plumet, onde se dará o idílio dos dois jovens.

O Livro VI compõe, pois, um itinerário que parte da indiferença, conhece a luz da paixão e chega às sombras do desolamento, quase eclipsando a conjunção das duas estrelas.

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  1. É admirável seu domínio sobre a obra de Hugo, Milton. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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  2. Obrigado, Gil! Um grande escritor nos encanta e nos inspira. Grande abraço, meu amigo!

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