O leitor, com certeza, conhece o conto Ideias de Canário , de Machado de Assis. Mesmo conhecendo-o, o leitor jamais o colocará entre os...

Ideias de Canário

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O leitor, com certeza, conhece o conto Ideias de Canário, de Machado de Assis. Mesmo conhecendo-o, o leitor jamais o colocará entre os dez mais, onde se encontram Cantiga de Esponsais, Missa do Galo ou A Cartomante, por ser dos contos menos votados do Bruxo do Cosme Velho. Sugiro, no entanto, que quem o conhece faça uma nova leitura, revisite-o, e quem não o conhece procure conhecê-lo. Despindo-se das impressões alardeadas aos quatro ventos, com relação aos ditos grandes contos de Machado, como O Caso da Vara ou Pai Contra Mãe, o leitor vai, certamente, saborear um texto delicioso, em que nosso grande escritor de Dom Casmurro exerce com maestria uma de suas características mais marcantes – a ironia.

Machado ironiza o saber acadêmico, quando submetidos aos padrões ditos científicos, que se querem imutáveis; ironiza o tom professoral superior dos que, tendo como base uma razão de autoridade,
Foto: Insley Pacheco ▪ 1864
acham-se sempre certos, porque, afinal de contas, a ciência sempre tem razão; ironiza o fato de que essa compreensão da ciência é limitadora da própria ciência, que sempre procura a evolução do seu pensamento. Enfim, Machado, sutilmente, através da alegoria do canário, numa fábula moderna das melhores, revela ironicamente como a percepção do mundo depende de quem o vê, e que, mesmo sob a ótica da ciência, essa percepção muda, porque o mundo e seus enigmas estão em contínuo processo de mudança. Entre o preto e o branco, apregoado por alguns cheios de certeza, por mais que se digam seguidores da ciência, há uma infinidade de tons. Nem mesmo o branco é sempre branco ou o preto sempre preto...

O canário, personagem do conto, não só nos abre a possibilidade dessa percepção que se expande, à medida que vamos conhecendo mais e mais, como também nos lança na cara a dúvida sobre as certezas do mundo. O leitor já percebeu que muitos dos que dizem seguir a ciência e que devemos duvidar sempre, só dizem isto se os resultados da ciência lhes forem favoráveis, e que a dúvida deve sempre ser sobre o que lhes é desfavorável?

Mas voltemos ao mais importante do conto Ideias de Canário. Este conto é excelente ainda por outro motivo: Machado nos ensina, avant la lettre, o que é horizonte de expectativa. Não é a primeira vez que falo aqui desse conceito, nem será a última. Quem o introduziu nos estudos literários foi Gérard Genette, teórico e crítico francês,
DR
ao formatar a sua teoria da transtextualidade, que se encontra no livro Palimpsestes: la littérature au second degré (Palimpsestos: a literatura em segundo grau, Paris, Seuil, 1982).

Genette amplia o conceito de intertextualidade de Júlia Kristeva, chamando as relações entre textos de transtextualidade, no sentido de que a literatura se caracteriza por uma grande relação entre textos, à maneira dos vasos comunicantes. Quanto maior for a capilaridade desses vasos, maior a compreensão das relações transtextuais. É aí que reside o significado de horizon d’attente ou horizonte de expectativa. É o conhecimento adquirido pelo leitor durante toda a sua vida que vai fazer maior ou menor a sua capacidade de reconhecer como um texto esconde e se nutre de vários textos. Se essa relação foi construída consciente e racionalmente ou de modo inconsciente pelo escritor, não importa, pois o horizonte de expectativa do escritor vai trazer uma boa dose do seu inconsciente para a obra. É inútil, portanto, a clássica pergunta: “o autor pensou nisto?”

Por outro lado, quanto mais o texto se relaciona com outros textos, mais sua leitura exige um aprofundamento, de modo a se mostrar a complexidade da sua construção. Mais importante do que leituras brilhantes, cheias do vazio retórico, ou de leituras complexas que quase ninguém entende, muitas vezes nem mesmo o seu autor, mais importante é entender e esclarecer a construção do texto, revelando que as leituras literárias devem sempre depender de uma profundidade e de uma perspicácia que possam atingir
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o texto em seu segundo grau. Em outras palavras, não basta entender o texto no seu significado (primeiro grau); é essencial que o entendamos na sua significância (segundo grau), pois é ela que nos revela o maior ou o menor grau da sua transtextualidade, esta “transfusão perpétua”, de que nos fala Genette, em que “todos os livros são, borgeanamente, um vasto Livro, um único Livro infinito”. Nesse sentido, ler e reler estão de mãos dadas, alimentando o horizonte de expectativa. Reler, então, é mais importante do que ler, porque o movimento é de retroalimentação: a leitura abre o horizonte, a releitura o amplia consideravelmente, porque permite ao leitor ver o que não tinha visto antes: ver bem não é ver tudo, é ver o que os outros não veem, já nos ensinava José Américo de Almeida.

O conto de Machado nos dá, portanto, várias lições. Além das lições de vida, ele nos desvela que se a teoria literária é importante, ainda mais importante e necessária é a leitura dos autores, pois é deles que deriva a criação da teoria. Se Genette não fosse um grande leitor, jamais teria percebido como a teoria da transtextualidade é mais ampla e mais abrangente do que a intertextualidade, introduzindo o conceito de horizonte de expectativa, para dizer claramente que as experiências de vida e de leitura adquiridas é que nos fazem ver com maior nitidez os detalhes, onde se esconde a essência para uma boa análise.

Insisto em dizer que a leitura dos autores é mais importante e necessária que a teoria, porque se esta nos ajuda a sistematizar um conhecimento sobre um texto, aquela nos ajuda a descobrir este conhecimento e nos permite, a nós próprios, fazer esta sistematização. A teoria da bela morte, característica fundamental do herói épico grego, é uma formulação de Jean-Pierre Vernant, mas ela se encontra pronta, na íntegra, no discurso de Príamo a seu filho Heitor, no Canto XXII da Ilíada. Assim como a teoria da verossimilhança está no Livro II da Eneida, no discurso plausível do grego Sínon aos Troianos, sobre o que é o cavalo de madeira e sobre a necessidade de colocá-lo para dentro das muralhas. Se o leitor quiser aprofundar seus conhecimentos sobre a verossimilhança, nada melhor do que ler o D. Quixote, onde a discussão vem sempre à tona, não pelas mãos de um teórico, que vê os fatos externamente, mas de Cervantes, um escritor que os conhece por dentro, pela sua essência mesma de criador, de ποιητής.

Na leitura do conto de Machado de Assis, vemos como o canário muda a sua percepção do que é o mundo. Da loja de um belchior à sua
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liberdade, a verdade mudou substancialmente, porque se alargou o seu horizonte de expectativa. E o alargamento é tal que o canário dá a Macedo, o seu interlocutor, o benefício de duvidar sobre os conceitos...

Para finalizar, gostaríamos de dizer que, se Machado antecipa o conceito de horizonte de expectativa de Genette, ele não poderia tê-lo feito sem saber, consciente ou inconscientemente, que o que vemos é ilusão e precisamos sair da posição em que estamos para conhecer novas verdades, as quais se tornarão novas ilusões, tanto maior seja a nossa disposição de ir adiante. O meu caríssimo leitor já deve ter entendido que o horizonte de expectativa já se encontrava em Platão, quando no Livro VII da República, Sócrates expõe a alegoria da caverna aos seus circunstantes e companheiros de discussão, que queriam saber o que é justiça, mas não mostravam qualquer disposição de ampliar as luzes, desejando obstinadamente permanecer na obscuridade ilusória da caverna em que se encontravam. Sair da caverna é o que faz o canário, ao fugir da gaiola e voltar para ensinar ao professoral Macedo sobre o que é o mundo e as suas verdades duvidosas.

Vamos às Ideias de Canário, querido leitor.

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  1. Ângela Bezerra de Castro16/7/22 11:42

    Acabei de ler você e também o conto de que não me lembrava. Obrigada pela valiosa indicação.

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  2. Obrigado, Ângela!

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  3. Marineuma de Oliveira17/7/22 13:37

    Que maravilha encontrar aqui uma leitura tão significativa de um dos contos de que mais gosto. Parabéns!

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