Meu querido Alexei, Parte do que aqui escrevo foi um sonho que tive, mas sabendo do alcance do seu saber e da sua compreensão, poss...

Carta a Alexei Bueno

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Meu querido Alexei,

Parte do que aqui escrevo foi um sonho que tive, mas sabendo do alcance do seu saber e da sua compreensão, posso confessar que foi um desdobramento, tal a materialidade tátil do que vivi. Eu saía de um edifício, quando fui chamado, do outro lado da rua, pelo meu irmão Arturo Gouveia, um grande conhecedor de Augusto dos Anjos, para ir até o lugar em que ele se encontrava. Ali chegando, encontrei-o acompanhado do nosso querido William Costa e de uma outra pessoa, cujo nome não lembrei, e ainda não lembro. Arturo me perguntava se eu iria participar da edição mista de Augusto dos Anjos, compreendendo,
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Arturo Gouveia facebook
além dos poemas, uma seleção de artigos sobre o poeta. Respondi que sim e que gostaria de contribuir, além do texto crítico, com uma ideia. Curioso por conhecer a minha ideia, William Costa acrescentou que a edição seria financiada por uma companhia de energia elétrica.

Respondendo a William, disse que, no meu entendimento, a edição deveria ser só do Eu, uma edição fac-similar e espelhada com a atualização do texto, que não poderia ser outro senão o texto estabelecido por você, Alexei. Argumentei que uma edição desse tipo seria interessante para os leitores que ali poderiam ver não só as transformações ortográficas por que a língua passou – acredito que o abandono puro e simples da escrita de viés etimológico foi um prejuízo inestimável! –, mas também o que se pôde corrigir com relação às gralhas tipográficas, devidamente anotadas, em cada texto, que teimam em aparecer, em edições apressadas e descuidadas, desmerecendo o trabalho do poeta e o seu, meu amigo. Afirmei que seria muito didática uma edição desse tipo, com a certeza de que o espelhamento dos textos e as notas explicativas tenderiam a desencorajar edições posteriores. Devo dizer que Arturo e William Costa gostaram da ideia, afirmando que iriam adotá-la. Acordei.

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William Costa facebook
Acordei, mas a vivência do desdobramento foi muito forte e ficou remoendo na minha mente. Diante da impossibilidade, a médio prazo, de uma edição como essa, vez que estamos trabalhando numa edição do Eu e Outras poesias, a ser lançada pela A União, sob a coordenação de nosso amigo William Costa, pensei num artigo que integraria uma edição futura de Augusto dos Anjos, sobre a sua vivência no Rio de Janeiro, intitulado “Rio, 1910-1914”, partindo da correspondência do poeta à mãe, nesse período, mas que iria além com os comentários da política, da sociedade, da geografia e da vida cultural da cidade, que só uma pessoa como você, carioca, conhecedor dos meandros dessa bela cidade e transbordando Augusto dos Anjos, poderia realizar.

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Augusto dos Anjos (1884—1914)
Continuei, meu amigo, com o assunto me espicaçando, durante boa parte do dia. Súbito, veio-me à mente o maravilhoso poema “Tragédia Brasileira” (Estrela da manhã), do nosso querido Manuel Bandeira. Como o perambular do nosso poeta do Pau d’Arco antecipa, com dignidade e por motivos diferentes, o perambular de Misael, pobre funcionário público à procura de resgatar Maria Elvira! Augusto, como sabemos, morou em 11 endereços, no Rio de Janeiro – Largo do Machado, 37; Avenida Central, 1, 2º andar/Praça Mauá, 73; abrigo em uma casa da Tijuca, por causa dos acontecimentos da Revolta da Chibata ou Rebelião da Armada; Rua São Clemente, 510, Botafogo; Rua Marechal Hermes, 42, Botafogo; Casa do Cunha Lima; Rua Haddok Lobo, 123, Pensão Brasileira; Rua Malvino Reis ou Aristides Lobo, 23, pensão, no Rio Comprido; Rua Haddok Lobo, nº 99, Pensão Rio de Janeiro; Rua D. Delfina, 56, Tijuca; retorno à pensão da Rua Aristides Lobo, 23... –, fazendo uma trajetória insana para manter a decência, que, em certos momentos, lembra essa necessidade de Misael, numa dificuldade sobre-humana para manter-se lúcido:


No entanto, meu querido amigo, nada mais trágico do que a necessidade, a terrível ἀνάγκη dos gregos, que estreita os nossos caminhos, podendo nos levar à tragédia ou à redenção. A ambos, Augusto e Misael, na realidade e na ficção, a necessidade levou à tragédia. Se, para Misael, a tragédia o perderia,
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Túmulo de Augusto dos Anjos, em Leopoldina, Minas Gerais.
com o seu daímon particular privando-o dos sentidos e da inteligência, para Augusto dos Anjos, a tragédia levaria à redenção. Tanto lutou o nosso poeta pela dignidade, vivendo a “faina extenuante de cavador” (Carta à mãe, datada de 25/01/1911), sendo até vendedor de seguro que, se ele mesmo tivesse comprado, não lhe teria assegurado coisa alguma – eis uma das faces da tragédia, meu amigo, a ironia gritante! –; tanto lutou pela estabilidade na vida e quando a consegue naquele domínio, a vida do professor – “numa luta de Ashverus do magistério obscuro” (Carta à mãe, datada de 24/04/1913) –, que sempre foi a sua segunda escolha, depois da visceralidade da poesia, o poeta morre, apenas 4 meses e alguns dias, em Leopoldina, cidade que o acolheu ad aeternitatem.

Eis, meu amigo querido, o resultado desse sonho/desdobramento. Fica no ar a ideia do artigo “Rio, 1910-1914” ou outro nome que seja, pois não duvido que o resultado saído de sua pena será mais uma homenagem digna do nosso grande Augusto dos Anjos.

Com um grande e fraterno abraço,

Milton

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  1. Sonho, ideia e texto admiráveis, caro Milton. Que Alexei Bueno aproveite a sua sugestão. Augusto, pelo que se vê, ainda renderá muitas palavras, o que prova que está cada vez mais vivo. É a compensação da posteridade gloriosa aos seus sofrimentos em vida. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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    1. Obrigado, Gil! Augusto é inesgotável.

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