Existem pares de substantivos comuns, semanticamente relacionados, em que o feminino e o masculino se usam diferentemente pelos falantes, guiados pela intuição. Pergunte-se a um brasileiro se ele põe uma jarra d’água ou um jarro d’água na mesa, se ele compra um saco de café ou uma saca de café, se ele pegava a barca ou o barco para ir do Rio a Niterói... A todas essas perguntas, ele responderá sem hesitação, de
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acordo com a própria intuição, sem que lhe tivessem ensinado o porquê da preferência pelo masculino ou pelo feminino, em cada situação...
Tentando explicar o porquê do masculino ou do feminino, nesses pares de palavras, Mattoso Câmara Jr., em sua Estrutura da Língua Portuguesa (Petrópolis: Vozes, 1970, p. 78), ensina: o feminino representa quase sempre um tipo marcado ou uma especialização da correspondente forma masculina, de sentido geral, não-marcado. Assim: o saco / a saca; o jarro/a jarra; o barco/a barca; o buraco/a buraca; o poço / a poça; o melão / a meloa; o cesto / a cesta; o mato /a mata, etc. É importante observar que nos referimos a pares em que há semelhança semântica. Não se incluem aqui, como adiante veremos, pares como fardo (carga) e farda (uniforme); ou como caso / casa; solo (chão) / sola (de sapato), etc., que não têm semas comuns.
Rodrigues Lapa, em sua Estilística da Língua Portuguesa (3.ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1959, p. 109), considera, nessas parelhas, que “o masculino representa maior grandeza no sentido de comprimento, o feminino maior grandeza no sentido da largura.
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O português viu nos objetos a imagem do homem e da mulher: o homem, mais forte, mais alto e esbelto; a mulher, mais baixa, mais larga, de curvas mais arredondadas.”
A explicação, talvez simplista demais por ser impressionista, não convence. O bolo (masc.) é tão redondo quanto a bola (fem.) e podem ambos ser de tamanhos diversos. Bolo, aliás, tem esse nome por analogia com bola. A explicação de Mattoso Câmara, acima apontada, parece mais adequada, por apoiar-se basicamente nas noções linguísticas de não marcado (masculino) e marcado (feminino), em oposição. De fato, o feminino é o único gênero em português, porque é marcado; o masculino é a própria ausência de gênero (o que vai de encontro às ideias feministas de que a nossa língua é machista). Assim Deus é masculino porque não tem o {-a} do feminino. Isto, isso, aquilo, quem, tudo, etc. exigem concordância no masculino porque são formas sem gênero. Não existe marca para o masculino, como existe para o feminino; assim como não existe marca para o singular, como existe para o plural. Sei que prato é singular porque não tem o {-s} de plural. Assim, a explicação de Mattoso Câmara parece a melhor, porque segue uma orientação linguística.
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Não sei até que ponto, no entanto, a explicação de Mattoso Câmara cobre esses pares de substantivos. Não sei se o nome cesta é marcado, por oposição a cesto, por exemplo. Há parelhas homeomórficas (isto é, pares de mesma forma) que, embora semanticamente próximas nos seus étimos ou em suas origens, já não são mais tão próximas assim ou não são sentidas pelo falante como semanticamente próximas, como: o braço (membro superior) / a braça (medida); o ponto/ a ponta; o bico (proeminência córnea da boca das aves) / a bica (tubo de onde escorre água); o bolo (guloseima) / a bola (corpo esférico), etc.
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Além disso, há outros substantivos que, embora morficamente idênticos, têm origem e significação diversas, e pertencem a campos semânticos distintos, como:
o milho
(cereal)
a milha
(medida itinerária)
o selo
(estampilha)
a sela
(arreio de montaria)
o tiro
(disparo)
a tira
(faixa)
o prato
(utensílio doméstico)
a prata
(metal)
o boto
(mamífero aquático)
a bota
(calçado)
o malho
(o martelo, como em “descer o malho”)
a malha
(o tecido ou o coletivo, como malha rodoviária, malha telefônica)
Paul Teyssier, no seu Manuel de langue portugaise (Portugal-Brésil) (Paris: Klincksieck, 1984, p. 57), após falar na diferença entre lenho (tronco de árvore) e lenha
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(madeira para queimar), dá a seguinte explicação: o substantivo masculino em {-o} designa um objeto individual e singular, enquanto o substantivo feminino em {-a} designa uma pluralidade, um conjunto ou uma massa, ex.: braço/braça; fruto / fruta; ovo / ova, etc. Em muitos outros casos constata-se que um dos termos do par é geral, e o outro é “marcado” em relação a ele, isto é, possui uma particularidade que faz dele um objeto menos frequente e mais original, ex.: bicho / bicha, dobro / dobra, lagarto / lagarta, cortiço / cortiça, cabeça / cabeço, etc., em que o primeiro membro do par é genérico, e o segundo é marcado.
Eis um bom tema para tese. Com a palavra os mestrandos em língua portuguesa...