O hábito começou muito cedo. Dizia “papá” e “mamã” com um prazer especial em jogar com as sílabas. “Pa... pá”, “mã... mã” – os sons iam e v...
O colecionador de palavras
O hábito começou muito cedo. Dizia “papá” e “mamã” com um prazer especial em jogar com as sílabas. “Pa... pá”, “mã... mã” – os sons iam e voltavam até que ele os guardava para depois, quando quisesse, brincar de novo. Com o tempo foi juntando outros fonemas (“bu... bu”, “pi... pi”, “tó...tó”). Um dia teve febre e ouviu “dodói”; enamorou-se da palavra e ficou repetindo-a em seu delírio.
As três coisas mais fortes da existência humana, eu vi de uma vez só: a morte, o amor e a vida. Eu era menino e um garoto mais velho da r...
As três feridas
As três coisas mais fortes da existência humana, eu vi de uma vez só: a morte, o amor e a vida.
Eu era menino e um garoto mais velho da rua foi atropelado.
Naquele tempo, menino brincava na rua, na calçada. O medo não fazia parte. Raul devia ter uns 17 ou 18 anos e foi atropelado por um Opala.
Imagine-se numa eletrizante excursão na Bavária alpestre, pelas lentes de um drone, de uma madrugada ao anoitecer, guiado por uma grande ob...
Uma viagem sinfônica
Imagine-se numa eletrizante excursão na Bavária alpestre, pelas lentes de um drone, de uma madrugada ao anoitecer, guiado por uma grande obra musical; assim é o Opus 64 de Richard Georg Strauss. Ao convite irrecusável orbitam algumas informações sobre seu criador, a obra em si e os desdobramentos dessa aventura que impressiona pela pujança e emotividade.

Espirituoso, Richard, sim, teve descomunal trabalho, muito embora tenha tido uma verve criadora e facilidade no compor que sequer requeria aproximar-se do piano durante seu processo composicional. Mas o trabalho deveu-se à intrincada trama de relacionamento temático, além das alusões imagéticas, baseadas numa viagem que fizera aos alpes bávaros, aos seus quatorze anos, e, ainda, nos recursos timbrísticos muito ricos que desprendeu na instrumentação, sem perder de vista uma orientação filosófica nietzscheriana. Para ainda mais adensar essa urdidura sinfônica, ele a faz como uma espécie de conto fantástico, façanha alpinista de um adolescente – ou de suas lembranças – reunida ao respeito que nutria por Mahler e sua obra: diversas são as alusões à música mahleriana e seu peculiar estilo.
Tal como Franz Liszt, – que criou sinfonias, poemas sinfônicos e sonatas em formas unas e cíclicas – Strauss concebeu Ein Alpensinfonie como um romance imagético-musical, ou conto orquestral. Os vinte e dois títulos são guias para o ouvinte, representações visuais que se desdobram, sem pausas, num cenário montanhesco de impressões que o compositor reuniu: Noite, Nascer do Sol, Ascensão, Entrada na Floresta, Vagueando junto ao Ribeiro, Na Cascata, Aparição, Sobre Prados Floridos, Na Pastagem Alpina, Perdendo-se por entre o Bosque Denso e a Mateira, No Glaciar, Instantes Perigosos, No Cume, Visão, Aumento do Nevoeiro, O Sol encobre-se a pouco e pouco, Elegia, Calma antes da Tempestade, Trovoada e Tempestade, Descida, Pôr-do-sol, Final e Noite.
A obra inicia e finaliza-se com a noite fazendo-nos atentar para o fechamento de um ciclo natural com tempo próprio, dado pelas montanhas, suas sombras e espantosas belezas. Também, noutro perceber, a filosofia que há na própria apreensão desses pulsos naturais de recorrência. O intelectual Antônio Houaiss – que nasceu apenas treze dias antes da estreia de Ein Alpensinfonie – define o verbo perceber como uma tomada de consciência por meio dos sentidos; um conhecimento por intuição ou perspicácia. Compreender, então, esse mundo sinfônico, – tanto literal das imagens não só Richard, mas de todos os que às montanhas alpinas forem, como das referências composicionais que direcionaram, por exemplo, as relações motívicas com os conceitos de Nietzsche emprenhados em Strauss – tem como condição sine qua non essa ‘tomada de consciência’ das capacidades cógnitas straussianas. Compreensão musical que não se dará apenas em nível de performance, ou seja, do desempenho de intérpretes, mas, aqui, toma um sentido amplo e irrestrito: a contenção em nós do fenômeno, de suas articulações timbrísticas e discursivas, e de seu poder expressivo e referencial, seja por criadores, executantes e ainda quaisquer outros ouvintes.

A madrugada vai se movimentando para o amanhecer e os primeiros dilúculos (Sonnenaufgang), que se irrompem por sobre a cordilheira gelada, explodem na orquestração que é sempre cheia. Após os irradiantes fachos de luz dá-se a ascensão imperiosa do sol (Der Anstieg) que soa enérgica, acentuada, quase marcial: um intenso despertar. À poesia da natureza é incrementada a curiosidade humana de explorar o entorno e surge a misteriosa floresta; como um narrador em primeira pessoa, a música nos faz adentrá-la (Eintritt in den Wald). Antes da floresta propriamente, há recurso já bem conhecido porém numa dimensão ampliada cujo efeito é magnífico: doze trompas, dois trompetes e dois trombones longe do alcance de visão (fora do palco) a anunciar uma altruística empreitada de caça, a encorajar.
Na floresta a música reporta-nos para um caminhar pensativo ao lado de um curso d’água: a destreza de Strauss é de uma simplicidade e criatividade tal que só os grandes possuem; ele põe, lado a lado, dois grupos rítmicos, um mais melódico e outro em notas bem curtas e sinuosas como uma corredeira que brota e segue. A corrente de água vai tomando forma e desemboca numa cachoeira (Am Wasserfall) que primeiro é pressentida, ouvida a queda d’água, e depois, vista (Erscheinung).


Não, não era por acaso que se resolveu pela rejeição daquela nova moradora da rua. Uns a achavam um saco de impropérios, uma mulherzinha ba...
Vizinha esnobe
Não, não era por acaso que se resolveu pela rejeição daquela nova moradora da rua. Uns a achavam um saco de impropérios, uma mulherzinha banal que não iria trazer para ninguém uma convivência prazerosa. Era uma mulher nada serena, advinda de ricas procedências sulistas, neta de algum ricaço empresário da Pauliceia.
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A evolução dos bichos (III)
Já morando no atual apartamento, pensávamos que bichos seriam páginas viradas. Mas não contávamos com o amor que nossos filhos têm por eles e por mim. E me deram no Natal de 2006 uma linda salsichinha (dachshund) preta e marrom: Maria Luiza Pires de Sá Espínola. Ou Merilú, como ela gostava de ser chamada.
Sou acordada pela Banda de Música Santa Cecília. É a alvorada que a Banda me presenteia avisando que é dia de festa, é vinte e quatro de ju...
Por trás daquelas montanhas
Sou acordada pela Banda de Música Santa Cecília. É a alvorada que a Banda me presenteia avisando que é dia de festa, é vinte e quatro de junho, aniversário da nossa cidade. O frio, o céu azul e as músicas me despertam para as comemorações. Agora, é vestir o uniforme de gala, saia cuidadosamente plissada, blusa de manga comprida, gravata, boina, luvas brancas e os sapatos impecavelmente engraxados. Perfeita e pronta para desfilar pelas ruas da cidade representando nosso colégio.
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Ritmo para o Sermão
O Sermão da Sexagésima é uma grande obra, em vários sentidos. Além de ser uma teoria da arte da parenética, por quem entende do assunto, vem de alguém que conhece a matéria por dentro, sabendo como fazer o que teoriza. Esta peça do padre Antônio Vieira nos atrai pela bela imagem que constrói de um sermão, mostrando de maneira inequívoca o seu objetivo: a repreensão dos vícios para a frutificação do bem. Trata-se, portanto, de peça doutrinária.
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Pinturas que são poemas
A obra de arte sempre reflete o estado de espírito do artista, o ambiente em que vive, pois existindo harmonia em sua alma, ele coloca paz naquilo que constrói. Seja um poema, um romance ou uma pintura, tudo traz o gozo desta quietude.
Não era tempo. Para algumas raras criaturas nunca será tempo. Ainda mais (para não dizer mormente, que agrediria seu ouvido) quando se trat...
Os guevaras que morremos
Não era tempo. Para algumas raras criaturas nunca será tempo. Ainda mais (para não dizer mormente, que agrediria seu ouvido) quando se trata de um remanescente do rebanho insubmisso de Augusto, o dos Anjos, destinado a fazer vagar na alma do mundo a noção expressa que colheu da vida e do mundo em seu “hidrogênio incandescente”.
A formação da família espiritual destina-se à família do mundo. Enquanto a humana é resultado de ato biológico, a espiritual é formada apen...
Parentes e amigos
A formação da família espiritual destina-se à família do mundo. Enquanto a humana é resultado de ato biológico, a espiritual é formada apenas por elos de amor entre os componentes. A finalidade da família na Terra é transformar parentes em amigos. Somos parentes às vezes à nossa revelia, mas para ser amigo é necessário o consentimento. E para bom êxito é comum termos até que engolir sapos.
Jesus é alegria Ser triste, sorumbático Circunspecto, de alma fria Macambúzio e apático Nunca foi ter sabedoria
Coração que arde
Jesus é alegria
Ser triste, sorumbático
Circunspecto, de alma fria
Macambúzio e apático
Nunca foi ter sabedoria
Na segunda metade dos anos sessenta um movimento nascido nos Estados Unidos ganhava o mundo: a contracultura. A juventude daquela época res...
A contracultura e os hippies
Na segunda metade dos anos sessenta um movimento nascido nos Estados Unidos ganhava o mundo: a contracultura. A juventude daquela época resolveu dar um grito de liberdade e se posicionar contra os valores impostos pela sociedade. Predominava um espírito de transformação dos costumes e padrões conservadores, um desejo de quebrar os tabus morais e culturais até então estabelecidos. Ousava transgredir regras, subverter convenções, promover uma revolução comportamental.
Já fui locutor de rádio. Ninguém imagina. Naquela época, década de 80, não havia as "lives" do mundo cibernético. Tudo era transm...
A fraternidade universal
Já fui locutor de rádio. Ninguém imagina. Naquela época, década de 80, não havia as "lives" do mundo cibernético. Tudo era transmitido em kilohertz e megahertz, sintonizado com o minucioso giro do botão do receptor. O programa era ao vivo, na Rádio Correio. Não me lembro se em AM ou FM. Começava com uma introdução musical e um texto declamado. Em seguida, entrávamos em cena.
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O editor que não lia livros
Quem conta é Antônio Carlos Villaça em seu “O livro dos fragmentos”: o editor José Olympio Pereira Filho não lia livros; gostava de ler jornais, mas livros não. Vejam só.
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Verão em Dublin
Há muitos e muitos anos vi um filme, "A Filha de Ryan" (Ryan's Daughter, 1970, de David Lean), que me deixou impressionada com um país (a Irlanda), pelas imagens grandiosas e pela poesia visual. Tempos mais tarde tive minha primeira aula de literatura irlandesa, e era sobre dois contos do livro Dublinenses (Dubliners, 1914), de James Joyce – Araby e Evelyn.
A Hora da Estrela Encontro-me comigo À hora da estrela. E um sem número de verdades Desfilam diante de um eu atônito.