Meados dos anos 60, no Hospital São Vicente de Paula, em João Pessoa, no final da manhã a Irmã Rosele entra pela enésima vez no apartam...

O íleo paralítico


Meados dos anos 60, no Hospital São Vicente de Paula, em João Pessoa, no final da manhã a Irmã Rosele entra pela enésima vez no apartamento do Comendador. Ela dá apoio logístico para uma verdadeira operação de guerra: a cirurgia do Comendador.

Há três dias se desenrola um drama naquele quarto: o velho Comendador, nos seus oitenta anos, por conta de uma prisão de ventre fora internado pelo Dr. Velho Mestre (então na flor da idade): uma semana sem evacuar!

Lá na Usina, os palpites eram os mais variados possíveis: uns diziam que era ventusidade; outros achavam que era um nó na tripa... Todos, porém, concordavam numa coisa: o Comendador não voltaria mais para a casa grande.

O quadro piorou muito, o velhinho ictérico no leito mais parecia uma cenoura, a barriga parecia um zabumbo, crescida e distendida. Já não saía mais nada, nem um pum! Vicente Ferrer, da funerária, muito amigo da família, já aparecera por lá.

O Dr. Velho Mestre estava bastante apreensivo: tentou tudo, com os parcos recursos medicinais disponíveis, àquela época. Litros e mais litros de soro; já era o décimo enema que o paciente tomava.

O Dr. Achiles Leal, jovem e brilhante cirurgião, foi chamado, e depois de ouvir a história clínica e examinar o paciente; de ver os exames realizados por Dr. Maurílio; e de ver o raio-x simples de abdômen feito no leito por Dr. Esmerino, concluiu tratar-se de um caso grave de obstrução intestinal, e que só se salvaria se fosse operado. Aguardava apenas o parecer do cardiologista, para levar para a sala.

Acontece que no final da manhã o Dr. Vanildo, após auscultar o coração arrítmico, auscultar os subcrépitos das bases dos pulmões, palpar os pulsos filiformes, tentar palpar o fígado, examinar as escleróticas, visualizar a cianose que já começava a se fazer notar no leito ungueal, observar a cardiomegalia no raio-x de tórax, e analisar o eletrocardiograma (um dos primeiros realizados na Paraíba!), enfim chegou a um diagnóstico, e a um prognóstico sombrio:

“Paciente de alto risco. Se for operado, tem elevada chance de não sair vivo da sala.”
Chororô geral, entre a esposa e as filhas do Comendador. E um banho de água fria no cirurgião, que tinha certeza de que salvaria o paciente.

Porém ao longo da tarde o paciente piorou tanto que os médicos assistentes realizaram uma junta médica, e chegaram à conclusão: ou opera ou morre sem fazer nada. Comunicada, a família autorizou a operação.

Fim de tarde na São Vicente, o corredor cheio de médicos ilustres e amigos: os jovens e inseparáveis urologistas Dr. Jacinto e Dr. Osorinho; Dr. Oscar de Castro discretamente contando uma piada a Dr. Humberto Nóbrega (que segurava o riso como podia); Dr. Plínio Espínola preocupado com o amigo; Dr. Lauro Wanderley e Dr. Danilo Luna (era o obstetra da esposa do Comendador); os pediatras Dr. João Soares e Dr. João Medeiros; o irreverente Dr. Arnaldo Tavares, só para citar alguns.

No Centro Cirúrgico, Dr. Achiles já se lavando e Dr. Almir Lopes preparando os gases para a anestesia. O maqueiro já estava na porta do quarto, para levar o paciente para a sala de cirurgia.

Logo após a saída do Padre Zé Coutinho, Dr. Velho Mestre pela última vez tomou o estetoscópio e auscultou o abdômen, na esperança de ouvir ruídos hidroaéreos. Pois isto significaria que o trânsito intestinal se refizera, tornando dispensável a cirurgia de altíssimo risco. Debalde: silêncio fúnebre.

Desolado, o Dr. Velho Mestre desabou na cadeira ao lado, e na vã tentativa de evitar a cirurgia, fez um último apelo ao paciente:

“Nêgo, dá um peidinho pro papai, nêgo, dá!?!”

* Trata-se de uma obra de ficção. Fatos e mitos se mesclam, tornando qualquer semelhança uma divertida coincidência.


José Mário Espínola é médico e escritor E-mail

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  1. Desejo ler suas crônicas todas as manhãs como um elixir do bem-viver!

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