O pensador francês Edgar Morin, autor célebre de vasta obra, completou cem anos de vida, em pleno gozo e exercício de seus reconhecidos ta...

Lições do centenário Edgar Morin

O pensador francês Edgar Morin, autor célebre de vasta obra, completou cem anos de vida, em pleno gozo e exercício de seus reconhecidos talentos. Para comemorar, acabou de publicar um pequeno volume que é uma espécie de síntese de seu pensamento criador e também – por que não? – uma forma de testamento existencial, tipo “vivi, pensei, escrevi e aqui está o que deixo para vocês”. Um relevante legado intelectual e humano de alguém cuja presença marcou e atravessou as últimas décadas no cenário cultural do Ocidente.

A obra de Edgar Morin é composta de muitos livros e através deles o autor foi deixando sua mensagem, ou seja, o registro escrito de sua compreensão a respeito dos temas que o ocuparam ao longo dos anos. Portanto, pode-se dizer, foram inúmeras as “lições” que forjou ao longo do caminho, não que pretendesse ser professor de ninguém, mas é que os que escrevem não podem fugir a esse magistério involuntário, intrínseco ao próprio ato de escrever e publicar. Ouçamos o próprio Morin no Preâmbulo do livro ora comentada “Que fique bem claro: não dou lições a ninguém. Tento extrair lições de uma experiência centenária e secular de vida, e desejo que elas sejam úteis a cada um, não só a quem queira refletir sobre sua própria vida, mas também a quem queira encontrar sua própria Via”. É isso. Vamos então ao que interessa.

A primeira lição, segundo o próprio Morin, tem a ver com a complexidade de tudo, “desde a partícula ... até a alma humana”. Nada nem ninguém é simples. As facetas são sempre várias. Estamos sempre mudando. Cada indivíduo possui, a seu modo, as relações entre “sapiens” e “demens”, “faber” e “mythologicus”, “aeconomicus” e “ludens”, ou seja, há no homem, interagindo e se alternando, as dimensão do sábio, do louco, do empreendedor, do crente, do trabalhador e do lúdico. “As relações entre racionalidade/paixão/delírio/fé/mito/religião, em cada um, são permutáveis, instáveis e modificáveis. O humano não é bom nem mau, é complexo e versátil”. Parece uma obviedade – mas não é. Daí a necessidade da paciência (para compreender) e da tolerância (para aceitar) no trato com nossos semelhantes.

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Outra lição: a imprevisibilidade da vida. “Toda vida é um navegar num oceano de incerteza, toda vida é incerta”. Escreve o autor: “O que se pode chamar de acaso, imprevisto, sorte no azar e vice-versa, desventura fonte de ventura e vice-versa, marcou minha vida sem descontinuidade”. Assim também a história: “O que se aplica aos indivíduos é ainda aplicável à história, que está submetida não só a determinismos econômicos, ambições, rapacidades e cobiças desmesuradas, mas também a uma absurdez quase shakespeariana ..., além de acidentes erros, acasos, lances de genialidade, lance de dados, lances de traição, lances de loucura”. O aleatório não pode nunca ser desconsiderado em tudo que é humano. Nada é seguro, nada é garantido, nada é imutável. O inesperado pode surgir a qualquer momento. Parece óbvio? Não é.

Mais uma: saber viver, essa arte sutil, essa sabedoria aparentemente fácil, tão buscadas e tão esquivas. Ouçamos: “A palavra viver tem duplo sentido. O primeiro é estar vivo, existir, o que é garantido por nossa organização biofísica,
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que mantém nosso estado de vivente graças à sua resistência à degradação mortal: respirar, alimentar-se, proteger-se. Nesse sentido, viver significa apenas manter-se em vida, ou seja, sobreviver. O segundo sentido da palavra viver é de conduzir a vida com suas oportunidades e seus riscos, suas possibilidades de prazer e sofrimento, alegrias e tristezas. A sobrevivência é necessária à vida, mas uma vida reduzida à sobrevivência já não é vida”. Sabemos que bilhões de humanos apenas sobrevivem – e não raro subvivem – debaixo de penúria, opressão e humilhação. E aqui entra o humanista solidário: “Uma das tarefas essenciais de uma política humanista é criar condições que deem não só a possibilidade de sobreviver, mas também de viver. Viver é poder gozar as possibilidades oferecidas pela vida”. Sim, devemos querer isso para todos.

Lição extraída de sua experiência na Segunda Grande Guerra, na qual atuou na Resistência francesa: “as catástrofes (e a pandemia de covid é uma) suscitam dois comportamentos contrários: o altruísmo e o egoísmo”. Perfeitamente. É assim.

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Lição da experiência stalinista: “ela me possibilitou compreender que eu era fundamentalmente direitista e esquerdista. Direitista porque a partir daí estava decidido a nunca mais sacrificar a ideia de liberdade. Esquerdista porque a partir daí estava convencido não da necessidade de uma revolução, mas da possibilidade de uma metamorfose. Enfim, essa desmistificação permitiu-me regenerar minha concepção de esquerda, que a meu ver sempre deve se abeberar simultaneamente em quatro fontes: a fonte libertária, para o pleno desenvolvimento dos indivíduos; a fonte socialista, para uma sociedade melhor; a fonte comunista, para uma sociedade mais fraterna; a fonte ecológica, para integrar melhor o humano na natureza e a natureza no humano”. Eis aí todo um programa político-existencial pleno, a pairar sobre radicalismos parciais e insuficientes.

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Derradeira lição, além de outras espalhadas no livro: “Afinal, é bom ser bom, faz bem ser pelo bem, o senso da complexidade possibilita perceber os aspectos diferentes e contraditórios dos seres, das conjunturas, dos acontecimentos, e essa percepção favorece a benevolência. Minha lição última, fruto conjunto de todas as minhas experiências, está nesse círculo vicioso no qual cooperam a razão aberta e a benevolência amorosa”. Bela conclusão para uma vida e um pensamento tão ricos.

E para completar, já agora, viúvo, no finalzinho da existência, Edgar Morin redescobriu mais uma vez o amor, quando conheceu Sabah Abouessalam, sua companheira atual, provavelmente a última. Esta é também uma valiosa lição que ele nos dá: a experiência afetiva é riquíssima fonte de vida e nunca deve ser desprezada, não importa a época em que surja em nosso caminho. Eros nunca deve se sujeitar a Tanatos, enquanto puder. É isso. Grande Morin!

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  1. Maravilha. Destaco isto: "a partir daí estava convencido não da necessidade de uma revolução, mas da possibilidade de uma metamorfose". Acho que estamos a caminho dela.

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