Havia duas ou três de linho branco com bordados manuais e espaçozinhos vazados a ponto de permitirem a visão do tampo da mesa em seu melhor verniz. Eram as meninas dos olhos de dona Vininha. Mas eu gostava mesmo era daquela com desenho de xadrez, em vermelho e branco. Tinha essa última, sem dúvida, as cores e o clima das festas de dezembro.
Mais do que isso, tinha as frequências dos fins de semana e, portanto, o valor das grandes afeições. Eu e minhas saudades hoje fazemos dela um signo de honra à família reunida em torno da mesa farta. Pai, mãe, irmãos, primos e amigos eventuais à espera daquilo surgido das panelas caseiras,
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O septuagenário que hoje sou não consegue lembrar da sala de jantar que teve na infância sem a cristaleira com três gavetas e três portas, a pequena geladeira ao lado, a velha máquina de costura do lado oposto e a janela aberta para o quintal, bem defronte à pequena cisterna. Nesse quadro nunca faltam a mesa comprida e a toalha xadrez onde apoiei os cotovelos de menino.
Com a palavra a psicanálise. Por que diabo essa obsessão por uma toalha de mesa? Antes que a resposta especializada me chegue, tento eu mesmo encontrar a explicação. Talvez isso decorra do encanto com piqueniques nas fitas de romance produzidas com água e açúcar por Hollywood. É possível que advenha daquelas cenas de cinema sob um carvalho frondoso em dias de primavera, posto que aos amantes não cabe, de melhor modo, outra estação.
O galã e a mocinha descem das bicicletas, retiram do bagageiro a cesta com frutas, bolos, queijos e sucos e, então, debaixo daquela sombra, antes de planos futuros e juras de amor, estendem a toalha da minha mãe. É bem possível que isso tenha impresso aquela trama de fios vermelhos e brancos nas lembranças que até hoje cultivo.
Gary Cooper e Audrey Hepburn, em "Amor na Tarde" (1957) ▪ Direção: Billy Wilder
O design de eletrodomésticos, móveis e carros daqueles tempos nunca deixou de me encantar. Para mim, nada se compara aos traços de uma geladeira antiga, arredondada, amarelinha, menor do que sua dona. E o que dizer de um Studebaker, zerinho, modelo 1950?
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Exibiam-se em quase todos eles os maridos pontuais e provedores, as mulheres gratas e servis e a criançada com papéis preestabelecidos: o que é de menino é de menino e o que é de menina é de menina. O trenzinho, a bola, a arminha (politicamente correta), a boneca, a casinha de madeira e as minicozinhas tinham, assim, endereços definitivos.
A propósito, lembro de uma velha propaganda de café em que uma esposa de bruços no colo do marido tomava palmadas no bumbum por haver comprado a marca errada. “Você sabe qual é a hora de servir uma boa feijoada? Qualquer hora”, sentenciava outra propaganda empenhada, neste caso, em convencer as donas de casa do poder da conservação de alimentos na geladeira recém-lançada no mercado. Vá eu hoje dizer à Patroa que o trabalho mais duro torna mais bela a mulher, ou fazê-la aceitar que o mundo é dos homens por mais que me caia bem a gravata nova.
Fonte ▪ Propagandas históricas
Devagar em alguns setores e com maior pressa em outros, o tempo, felizmente, modifica usos e hábitos. A divisão de tarefas, dentro e fora do lar, tem refeito a relação macho/fêmea. Há as que hoje ainda reclamam dos afazeres domésticos depois de um dia exaustivo no escritório, no consultório, ou na loja. Contudo, os atuais maridos, em número crescente, já podem fazer o mesmo diante da pia.
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Noto, sem que me matem a saudade, que elas persistem onde se cubram mesas em todas as direções da Rosa dos Ventos, de Moscou a Nova York, de Piripiri a São José da Lagoa Tapada. Assim mesmo, no mundo inteiro. Eu compro a pizza. Quem lava os pratos?