Antigamente tinha uma expressão, “ficar para titia”, termo pejorativo para designar mulheres que não se casavam e/ou não eram escolhid...

Ela e suas Tias

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Antigamente tinha uma expressão, “ficar para titia”, termo pejorativo para designar mulheres que não se casavam e/ou não eram escolhidas por um homem para ser seu par. Uma vez não escolhidas para o casamento, ferradas a sangue e ferro para o resto da vida. Rejeitada. Solteirona. E à margem da sociedade, do mundo e da vida. Por isso que, muitas mulheres preferiam o sacerdócio – freira, ou virar prostituta, para não ficar nesse lugar de solidão e cancelamento.

Ela teve algumas tias solteironas que conheceu. Até conviveu com algumas. Com umas teve sentimentos de empatia, com outras mais irritação, era muito jovem, imatura e arrogante, como são os jovens, e ainda não tinha o alcance para ter recalques, tristezas, sofrimentos e impotências. Ao longo da vida foi se afeiçoando e vivenciando uma sororidade ainda latente e tardia, nos seus idos anos de juventude.

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Evard Munch
Uma tia nasceu dezenove anos mais velha que a irmã caçula. O pai sumiu embrenhado na Expedição Rondon, sem aviso nem despedidas, e, depois desse tempo, voltou com a cara lambida. A mulher o aceitou de volta com gosto de hortelã na boca. E veio a segunda filha que, ao contrário da primeira, era linda. A mais velha era considerada feia, e com um corpo não reconhecido pela beleza. Usava óculos e tinha os pés pequenos. E seios grandes. Morreu atropelada atrapalhando o tráfego como na música de Chico. Tinha o nome das Dores no seu próprio.

A segunda se apaixonou quando jovem, por um “homem de cor”. Imperdoável. Reprimida e reprovada, não quis saber mais desse negócio de paixão. Uma mulher bonita que se tornou professora. Mas a amargura lhe tomou as carnes e teve artrite. O seu corpo chorava de dor e as articulações teimavam em encolher. Sozinha e com o olhar perdido, virou uma estrela. Nem sei se cadente. Uma ingênua Eugênia? Não tanto.

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Evard Munch
A terceira tinha nome dos anjos lá do céu. Tocando harpa e tudo. Silenciosa. Ensimesmada a vida toda. Nunca se soube o que sentia. O que queria. Quieta observando o mundo e uma vida pobre ao seu redor. A cadeira de balanço era o seu habitat, quem sabe para lhe ninar tanto acabrunhamento. Morreu de um suspiro. Um sopro. Enquanto se balançava. Já velha e relegada à sua insignificância.

A única que se casou, melhor teria feito se tivesse, sim, ficado no caritó. Qualquer traste era um passaporte de entrada ao paraíso. Ou ao inferno. Tinha um nome tão doce. De caravela. Costurava para fora, como se dizia, mas os trocados do seu suor? Jamais vira. O seu algoz abocanhava tudo. E trancava a dispensa para que não comesse fora de hora nem além da conta. Magrinha, trabalhava feito formiga, curvada numa máquina, enquanto o marido passava o dia na janela, vendo as pessoas passarem na calçada a caminho da missa. O oitão da catedral era o seu cativeiro. Anos depois soube que nunca fez sexo e que esse marido que usava um chapéu, era impotente. Histórias do beco das ruas. Se falava. Também se despediu da vida se ninando.

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Evard Munch
Mas teve uma outra tia que, essa sim, enfrentou a solteirice reconhecida. Tinha nome de anjo também. Angelical e de cabelos em neve, mesmo na mocidade. Naquela época as mulheres tinham nomes assim. Uma identidade sagrada e sofrida para que já lhe outorgassem esse lugar de inanição e culpas e pecados. Era professora também. E como tinha quase um halo sobre a cabeça, era muito admirada. Tanto que virou nome de rua. Católica fervorosa. Rezava o tempo todo. Mas era no desequilíbrio emocional, na pequena (ou grande loucura), que o seu corpo se defendia. Como tão bem já disseram as estudiosas, as mulheres do século dezenove encontravam na histeria, na loucura, a saída para tantas faltas. Ainda mais aquelas tão proibidas. O desejo! Ah esse assombro indomável.

E last but not least, tinha ainda aquela tia que vestia azul. Rosto moreno, magra, feições dos povos originários e usava uma trança fina. Sozinha no mundo, morava na casa dos parentes. Andava a cidade toda a pé. Sem muita conversa. E gostava de suco de maracujá, quando sob um sol escaldante, fazia alguma visita repentina, e se refestelava do cansaço e suor na testa. Quantas vezes lhe levou em casa. A única carona que aceitava. Era arisca e respondona. E doce também. A sobrinha sentia orgulho de atestarem a parecença.

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Helene Funke
Mulheres tias e santas. Santas e Loucas. A loucura feminina. O sofrimento das mulheres. Seus arcabouços e prisões tão declaradas. E sem direito a voto, à defesa, à liberdade, ou a qualquer direito que as protegesse. E ainda dizem que, tempo bom era antigamente. Qual nada! tempo bom é hoje. Ainda mais para as mulheres. Nenhuma passa mais fome ditada, se deixa enredar na “feiura” (mesmo com a indústria da beleza extremada e do corpo ideal); silencia quando quer falar; ou larga de mão o seu escolhido para amar, seja ele preto, branco ou amarelo.

E como essas tias, muitas mulheres tiveram o seu destino traçado. Destino esse que de nada é biológico, mas um destino criado e determinado pela cultura. A cultura dos homens.

A violência contra a mulher continua de forma avassaladora. O feminicídio desenfreado. Mas as conquistas das mulheres, principalmente no que diz respeito ao seu desejo, inclusive e principalmente o sexual, essas são irreversíveis.

Viva as Mulheres!

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  1. Também tive minhas tias e assistir seus sofrimentos 🪡🧵✂️

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