Estes 25 anos de idade ainda vão me matar. Não saio deles há mais de meio século. Tudo por culpa do corpo que, um tanto combalido, não se comunica com a cabeça, a quem não conta a idade que tem.
Domingo passado, subi quatro lances de escada com a pressa de tempos idos e quase não alcanço o 6 de junho, data em que vim ao mundo. Amarelo, ofegante e trêmulo, precisei da cadeira de balanço, do ventilador com pás de teco-teco em sua maior velocidade, de um comprimido extra de losartana e do carão da mulher: “Seu doido. Você pensa que é jovem?”.
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Às vezes, bate-me a sensatez. Pressinto o perigo e fujo dele, mas não sem certa relutância e em instantes bem raros. Confesso que já não aceito por inteiro o convite do neto, na quadra do prédio. “Vamos pro drible, vovô”. E eu: “Vamos não, camarada. Vamos ficar no trave a trave”.
Nos momentos de maior lucidez, aqueles da percepção dos cabelos brancos e das pernas bambas, dei para nutrir o sentimento que antes eu não tinha: o da inveja. Como eu gostaria de correr as maratonas que Seu Zé,
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Por falar nisso, como eu gostaria de ser pai aos 90 anos, como foi Seu Viana, homem, ainda, de cabo de enxada, ante o queixo caído dos seus conterrâneos na pequena cidade onde vivíamos. Ali, ninguém duvidava daquela paternidade pois as crianças nascidas de mães diferentes tinham seus traços fisionômicos e seu jeito de andar. “Não bebo, não fumo, não sou de me empanturrar, nunca tive uma dor de cabeça nem doença que me derrubasse”, assim respondia ele aos interessados na mais espantosa de suas performances.
É verdade: nunca me vi com mais de 30 anos nos sonhos que tenho. Neles, estou sempre correndo de um canto para outro, distribuindo pautas de jornal a equipes que já comandei, bebericando nos bares que não mais existem e com gente que em boa parte já partiu do mundo real para a eternidade.
Sonho muito e acordo, quase toda santa manhã, com a lembrança de festas, farras e confusões em que tenho me metido ao longo das madrugadas. Foi não foi,
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Corpo e alma, de fato, não se comunicam. Anos atrás, li num desses portais de notícia que Ronnie Von, nascido em berço de ouro, teve que hospitalizar o pai ido aos 93 anos, o diplomata José Maria Nogueira, quando este despencou da cadeira onde havia subido para dependurar um jarro em gancho de varanda. Reclamou o muito bem conservado Ronnie do alto dos seus 70 e tantos anos: “Papai, temos três jardineiros em casa e você não é mais criança”. E o velho: “Eu sei, meu filho, mas o corpo não sabe”.
Quanto a mim, eu quero é botar meu bloco na rua, como cantava Sérgio Sampaio, um camarada nascido em Cachoeiro do Itapemirim, lugar de onde o garoto Roberto também surgiu para os holofotes do mundo. Ele e sua franja de mais de oito décadas. Envelhecer em demasia não vale a pena. Perguntemos a Chico, Caetano, Gil, Paulinho da Viola e outros tão, ou menos cotados, todos ainda em atividade.
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Tenho recebido o aviso de que integro uma geração que viu a troca de um milênio e fez a passagem de um século para outro. Qual a vantagem? Quem passou dos 23 anos também fez isso. O advento do celular, coisa de ontem, tem o testemunho dos cinquentões. Jornal feito com chumbo derretido? Pois bem, a composição a frio, essa do sistema offset, é acontecimento de meados de1970, por aí assim, nesta Paraíba cansada de guerra.
Nascido na metade de 1945, vi e ouvi coisa muito mais antiga, meus caros. Com pouca idade e, então, sem nada entender do assunto, assustei-me com o lema de Juscelino: “50 anos em cinco”. Eu não tinha tanta pressa. No início da adolescência, troquei, sem o menor remorso, os versos melosos de Adelino Moreira e a voz de peito de Nelson Gonçalves por “Chega de Saudade”, o sussurro de João Gilberto, um cantor de nariz. Mantive-me fiel à Bossa Nova e passei a fotografar a deusa da minha rua com aquela rolleiflex. Aceitei, de pronto, que no peito dos desafinados também bate um coração.
E assim prossigo na vida. O garoto que sou sempre tentará fazer com que o corpo não revele ao espírito os achaques dos quais padece, não muitos, felizmente. Uma diabetizinha aqui, uma hipertensão acolá e vou deixando a vida me levar. Agora, com licença, pois vou tomar meu chope. Acho que o mereço.