Era em São José dos Campos – Cassiano Ricardo A citada epígrafe acima revela onde aconteceu o causo. Causo não, mas sim um fato q...

Ideto e as lagartixas

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Era em São José dos Campos – Cassiano Ricardo

A citada epígrafe acima revela onde aconteceu o causo. Causo não, mas sim um fato que me causou constrangimentos quando fui presenteado com a pecha de mentiroso, lá em priscas eras. Sim, bem lá atrás nos tempos quando eu tinha meus 7 anos.

Lá em São José, entre a avenida Nélson D’Ávila e a rua Paraibuna, área hoje tomada por edificações destinadas em sua maioria ao comércio, poucas eram as residências naqueles anos, dentre as quais, uma delas, era onde morávamos. Naquela área entre as vias que citei acima, ficava também uma granja, onde vez ou outra íamos comprar ovos ou buscar esterco de galinha para fertilizar uns canteiros de hortaliças que tínhamos no quintal.

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"Fundo do Vale (1969)S. J. dos Campos Antigamente
Do outro lado dessa avenida, a Nélson D’Ávila, entre ela e um pântano (esse brejo hoje virou a avenida “Fundo do Vale”) também havia pelo menos mais outras duas granjas, com a mesma finalidade: produção de ovos. Esses empreendimentos eram tocados por gente do olho puxadinho, japoneses e descendentes.

Mas aqui o que interessa mesmo é a primeira das herdades, fincada entre as duas vias citadas, porque lá morava Ideto, um japonesinho de minha idade, meu parceiro e cúmplice nos acontecimentos que vou relatar. Fazíamos a primeira série no ngelo de Siqueira Afonso sob a batuta de Dona Emília Rachid Meira, a professora mais bonita e mais gentil que vi em toda a minha vida. Juntos dávamos conta dos deveres escolares, algumas vezes em minha casa, outras na dele. Jogávamos bola no campinho defronte a Igreja de São Dimas e ali também empinávamos pipa nos ventos de julho.

Fiquei muito encantado com um álbum de figurinhas de Ideto e do irmão Katiã. Quem completasse o álbum receberia uma bicicleta Monark. Faltavam apenas três figurinhas, as carimbadas, difíceis de serem encontradas nos envelopes que eram comprados na banca de Seu Otacílio. Mazzola, De Sordi e Canhoteiro eram as que estavam faltando.

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@jfleiloeira
Meu pai não gostava dessas coisas porque dizia que era um truque do capitalismo para explorar a classe trabalhadora. Uma enganação. Ninguém ia receber prêmio algum. Mas não é que Ideto e Katiã completaram o álbum? Receberam a bicicleta novinha, linda, linda. Quando contei ao meu pai ele desconversou e ainda muito bravo, me chamou de mentiroso. Continuando...

Foi o ano em que minha irmã caçula veio à luz. Um pacotinho de gente de muito encanto e formosura. Dona Mitiko, mãe de Ideto, assim que soube veio nos visitar. Foi recebida, se apresentou (meus pais ainda não a conheciam) e trouxe um bolo, kasutera, feito à base de farinha, açúcar, ovos (não podiam faltar) e mel. Devoramos aquele confeito assim que nossa visitante se foi. Essa cortesia derreteu o coração da matriarca lá de casa e daí em diante, vira e mexe trocavam receitas e informações acerca dos dois rebentos, no caso, eu e Ideto.

Até que um dia, na volta da escola, contei ao japonês que minha irmãzinha estava chorando muito com cólicas a noite toda. Nem chegou ao final da tarde e Dona Mitiko apareceu com uma garrafinha contendo um líquido esverdeado parecendo vitamina de abacate. Tiro e queda para cólica de criança, disse ela. Minha mãe agradeceu e aquela mezinha foi mesmo de grande eficácia. Duas colheradas e pronto!

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@iquilibrio.com
Dia seguinte, Ideto me contou que quem preparava aquelas garrafadas era Dona Zuleika, uma cigana que fora abandonada dois anos atrás por sua gente quando haviam acampado em frente à igreja, isso porque ela não queria mais ver o futuro das pessoas pondo as cartas ou lendo a mão de quem quisesse saber o que viria à frente na vida. Fiquei meio sem saber o que era pôr as cartas e ler a mão e só fui entender anos depois. Disse ele ainda que Dona Zuleika tinha dentes de ouro, só tomava banho nos dias de lua cheia e se alimentava de rabo de lagartixa. Seus pais a acolheram em troca dos serviços como doméstica e arrumaram um quartinho num canto da granja para ela se acomodar.

Muito curioso, no domingo seguinte, apareci na granja de Ideto. Ele me mostrou atrás dos galpões uma espécie de tanque, como essas caixas d’água antigas de amianto. Estava coberto por uma tela de malha bem estreita. Lá dentro, acreditem, pelo menos uma dezena de lagartixas. O que elas comem? Perguntei. A gente põe bosta de galinha, em cima da tela, molha, nascem umas lombriguinhas que caem e as lagartixas devoram essas minhoquinhas, ele explicou. Estranhei que algumas estavam sem rabo. Então, ele me contou: É que Dona Zuleika pega as bichinhas e morde o rabo delas para comer. Depois os rabos nascem novamente. Fiquei intrigado com aquilo e contei o que vira quando lá em casa na hora do almoço daquele domingo. Todos riram. Menos meu pai que não achou graça no que eu dissera. E...

— Você está um mentiroso de marca maior. Ninguém come essas coisas, se você não der pra nada na vida, quem sabe um dia vire um escritor – ainda me olhou com a cara mais feia do mundo.

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  1. Anônimo3/5/24 18:08

    Kkkkkkkklkkkkkkk👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏✂️🪡🧵

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