Em 1988, o aiatolá Khomeini, então todo-poderoso líder religioso e político do Irã, decretou uma fatwa contra o escritor anglo-indiano naturalizado norte-americano Salman Rushdie. A fatwa é um decreto oficial de condenação à morte e possui uma característica especial que aumenta consideravelmente sua letalidade, pois autoriza qualquer muçulmano, em qualquer lugar do mundo e em qualquer tempo, a cumpri-lo, ou seja, a matar aquele ou aquela objeto da sentença. No caso do referido escritor, a condenação deveu-se ao seu livro Os Versos Satânicos, que, segundo o aiatolá, teria ofendido a fé islâmica e seus seguidores.
Celyn Kang
Desde então, Salman Rushdie viveu se escondendo (morou em nove casas diferentes no período de dez anos) e se protegendo, compreensivelmente paranoico com a real possibilidade de ser morto a qualquer instante. Pode-se até afirmar que essa permanente angústia e esse contínuo medo foram, sob certo aspecto, piores do que a morte em si, pois esta resolveria tudo rapidamente, de uma vez por todas, enquanto que a sua concreta possibilidade torturou-o silenciosamente durante mais ou menos 34 anos, até 2022, quando afinal o atentado se consumou, à vista de todos.
Salman Rushdie David Shankbone
Hall da Filosofia, Instituto Chautauqua (Nova York-EUA) CC0
Salman Rushdie@SalmanRushdie/Twitter
O volume é sóbrio e relativamente enxuto (225 páginas). O título por si só já diz tudo, para o leitor a par dos fatos. E a capa do volume traz um desenho de um corte sob a palavra única e definitiva. Uma faca, sabemos, pode servir para partir o pão e para matar. Em si mesma, como objeto, é neutra. O bem e o mal que pode fazer dependem do humano que a usar. É sempre o elemento humano a introduzir o bem e o mal no mundo, pois as coisas e a natureza são amorais.
O fim do livro narra a volta do escritor, com sua atual esposa, ao local do atentado. Um reencontro com o começo de sua desdita, como que para fechar o círculo de sofrimento. As derradeiras palavras são “Terminamos por aqui. Vamos voltar para casa”. Um belo e correto final, pois a casa da gente, bem ou mal, é sempre um porto seguro, lugar onde, sempre supomos, estamos a salvo das maldades externas.
Mas a fatwa continua, uma vez que, ao que eu saiba, não foi revogada pelos aiatolás iranianos. Mais de trinta anos passados e Khomeini já morto, a antiga sentença condenatória está em vigor e, como no início, distante, muito distante do amor e do perdão, e provavelmente na contramão dos ensinamentos do profeta, se a leitura dos mesmos não for ao pé da letra. Salman Rushdie está vivo. Sobrevivente, mas vivo – e escrevendo sua literatura. Como bem pode ver o leitor, até agora a arte vem vencendo a faca.
E que assim continue para sempre. Amém.