A voluntária morte do poeta e filósofo Antonio Cícero, ocorrida na última quarta-feira, 23 de outubro de 2024, em Zurique, na Suíça, é daquelas que nos põem a pensar. Pois foi uma morte por eutanásia (suicídio assistido), escolhida e planejada, além de tranquila, ele segurando a mão do companheiro de vida até o fim. Uma bela morte, diriam os filósofos, pois reuniu no ato derradeiro consciência, domínio, aceitação e paz, ingredientes quase sempre difíceis de juntar. Daí a beleza da despedida desse carioca de 79 anos, autor de uma consistente obra poética e filosófica, que o levou, por merecimento, à Academia Brasileira de Letras, sem falar na consagração pela autoria de inúmeras letras de canções célebres de nossa música popular.
Antonio Cícero Funarte
Diagnosticado há pouco tempo com progressiva e irreversível enfermidade, ele logo tratou de se informar a respeito da eutanásia (suicídio assistido), em clínica especializada da Suíça. Era a lucidez do filósofo tomando a frente das iniciativas para a despedida final. Não queria ele chegar ao ponto de ser totalmente dominado pela cruel doença que lhe suprimiria as lembranças e as faculdades cognitivas, ferramentas indispensáveis ao poeta e ao filósofo. Ao invés de esperar a aniquilação em vida, preferiu antecipar a morte. Um fim não apenas escolhido, mas profundamente meditado, como conviria a alguém que erigiu o livre pensar em profissão e em maneira de ser e estar no mundo.
Antonio Cícero ABL
Nele, acredito que não se conflitaram o poeta e o filósofo. A lírica e a fria razão. O sentimento e o pensamento. O voo criativo da poesia e os pés no chão da racionalidade. É possível encontrar em alguns (ou vários) de seus poemas a reflexão do filósofo, do pensador. Um de seus poemas mais conhecidos é “Guardar”, título de, se não me engano, seu último livro. Belíssimo, não vou reproduzi-lo aqui porque está sendo muito divulgado postumamente e não quero ser repetitivo. Em seu lugar, brindo o leitor com o poema “Desejo”, o qual dá uma ideia da poética ciceroniana:
“Só o desejo não passa
e só deseja o que passa
e passo meu tempo inteiro
enfrentando um só problema:
ao menos no meu poema
agarrar o passageiro.”
De fato, é este o ingrato trabalho de todo poeta: tentar agarrar no poema o passageiro, o que passa num fugidio instante, no mais das vezes despercebido pela multidão. E é exatamente isso que diferencia o poeta de seus semelhantes: essa capacidade - dom ou maldição - de perceber o que passa – e tentar retê-lo pela palavra.
Antonio Cícero e Marcelo Pies Arquivo pessoal
“Vida, valeu.
Não te repetirei jamais.”
Essa bela morte de Antonio Cícero lembra-nos a de Sócrates, por suas deliberação e serenidade. Podemos dizer que seu adeus foi seu derradeiro poema e sua suprema declaração filosófica. O poeta filósofo partiu em paz.