Em meados de junho de 1625, há exatos quatrocentos anos, chegava ao litoral da Paraíba uma poderosa armada holandesa que, durante cerc...

Há quatrocentos anos, os holandeses chegavam à Paraíba

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Em meados de junho de 1625, há exatos quatrocentos anos, chegava ao litoral da Paraíba uma poderosa armada holandesa que, durante cerca de 40 dias, ficou ancorada na Baía da Traição. Apesar dessa curta permanência em terras paraibanas, os neerlandeses conseguiram, naquela ocasião, construir uma relação de amizade com o grupo indígena Potiguara que vivia na região o que, anos depois,
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lhes seria útil nos embates que viriam a travar com os portugueses no Nordeste brasileiro. Mas, como e por que essa esquadra fundeou na Baía da Traição?

Em maio de 1624, uma expedição holandesa conquistou Salvador, que era a sede do governo-geral do Brasil. A invasão dos flamengos à cidade fora organizada pela Companhia das Índias Ocidentais, uma empresa constituída por acionistas que, três anos antes, fora fundada em Amsterdã para, em regime de monopólio, ocupar e explorar economicamente territórios espanhóis. Os Países Baixos estavam, há anos, em guerra com a Espanha e, naquele momento, já fazia mais de quatro décadas que Portugal e suas colônias estavam subordinados ao reino de Castela, o que explica a incursão holandesa à Bahia. Os espanhóis, ao tomarem conhecimento da situação de Salvador, prontamente organizaram uma esquadra para reconquistar a cidade e os holandeses, ao saberem disso, também tomaram providências para enviar reforços para a manutenção da sua conquista.

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O percurso da armada que foi organizada pela Companhia das Índias Ocidentais como reforço da ocupação de Salvador, da sua saída dos Países Baixos até a sua partida da Baía da Traição, foi narrado por Joannes de Laet, um dos diretores da Companhia, na sua obra História ou Annaes dos Feitos da Companhia Privilegiada das Índias Ocidentais desde o seu começo até o fim do anno de 1636, publicada, em 1644, em Leiden e, em 1912, no Brasil, com a tradução dos respeitados pesquisadores pernambucanos José Hygino Duarte Pereira e Pedro Souto Maior.

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ESQ: Joannes de Laet (1581—1649). ▪ CENTRO: frontispício do livro "História ou Annaes dos Feitos da Companhia Privilegiada das Índias Ocidentais desde o seu começo até o fim do anno de 1636", na versão original, em holandês. ▪ DIR: capa do livro traduzido para a língua portuguesa, por José Hygino Duarte Pereira e Pedro Souto Maior. ▪ Fonte: Biblioteca Nacional.
Conforme o relato de Joannes de Laet, “a Companhia aparelhara duas armadas, que haviam de partir para a Bahia para o efeito de defender e segurar a cidade de S. Salvador”. Inicialmente, fora organizada apenas uma armada mas, segundo Laet, “porque os boatos dos grandes aprestos, que se faziam em Espanha e Portugal, tomavam vulto de dia para dia, a Companhia aparelhou mais uma lustrosa armada”. A expedição que reuniu as duas armadas, com 33 naus e cerca de 5 mil homens, entre marinheiros e soldados, ficou sob as ordens do general Bouduwijn Hendrickzs, burgomestre (uma espécie de prefeito) da cidade de Edam. Apesar da urgência no auxílio às forças neerlandesas que ocupavam Salvador, as embarcações ficaram “por muito tempo retidas nos portos por não lhes servirem os ventos” e os navios somente deixaram a Holanda no início de março de 1625.

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O domínio holandês em Salvador, Bahia ▪ Litogravura ilustrativa do livro "História ou Annaes dos Feitos da Companhia Privilegiada das Índias Ocidentais desde o seu começo até o fim do anno de 1636" (Joannes de Laet, edição original). ▪ ed. Bonaventure & Abraham Elzevir, Leiden, 1644 ▪ Fonte: Biblioteca Nacional.
O atraso na partida dos navios dos Países Baixos foi fatal para o objetivo da armada comandada pelo general Hendrickzs. Segundo Laet, ao chegar a Salvador na última semana de maio, “viu o general, a muito pesar, que tremulava a bandeira espanhola no baluarte de S. Salvador [...] pois claro estava que o inimigo se fizera senhor da cidade”. Como as forças ibéricas que haviam reconquistado Salvador eram muito superiores às holandesas, Hendrickzs “prudentemente desistiu de enfrentar a armada luso-espanhola, singrando para o Caribe e ancorando, a caminho, na baía da Traição (Paraíba)”, conforme escreveu Evaldo Cabral de Mello.

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Baía de Todos os Santos: palco de conflitos entre espanhois e holandeses. ▪ ed. Bonaventure & Abraham Elzevir, Leiden, 1644 ▪ Fonte: Biblioteca Nacional.
A frota holandesa deixou a Bahia navegando para o norte na procura de locais onde as naus pudessem ancorar. Um dos primeiros que foram avistados “tinha capacidade para onze ou doze navios, mas não para toda a armada”. Na narrativa de Joannes de Laet, já se começava a sentir a falta de água nas embarcações e “diariamente morria muita gente, e tal era o número de doentes em alguns navios que não se podiam marear as velas”. A armada continuou seguindo no rumo norte e no dia 18 de junho chegava ao litoral paraibano “indo surgir uma légua a barlavento do rio Parahyba”. No dia seguinte, uma pequena embarcação foi enviada para averiguar as condições de navegação no rio constatando que não seria possível a entrada dos navios de maior porte da armada. Foi nessa ocasião que, no relato de Laet, o forte de Cabedelo tomou conhecimento da presença das embarcações batavas:

“o forte de Cabo Delo atirou contra os nossos navios, mas os seus tiros não acertaram [...] O general entendendo que com navios tão pesados não se podia deter sobre a costa a sotavento, determinou seguir com elles para a bahia da Traição, que fica cinco leguas ao norte da Parahyba”.
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Mapa do estuário do rio Paraíba, em página dupla, que ilustra o livro de Joannes de Laet. ESQ: a cidade Frederica (Frederykstad, atual João Pessoa). DIR: a ilha da Restinga e o Forte Margarida (atual Forte de Santa Catarina) no "Cabo Delo" (atual cidade de Cabedelo). ▪ ed. Bonaventure & Abraham Elzevir, Leiden, 1644 ▪ Fonte: Biblioteca Nacional.
No dia 20 de junho, a armada fundeava na Baía da Traição onde existia “um pequeno povoado onde tinham os Portuguezes uma capella”. A povoação estava deserta porque os moradores haviam fugido quando da chegada da esquadra holandesa. Conforme a narrativa de Joannes de Laet:

“Em os dois dias seguintes levantou-se uma trincheira em terra, e no terceiro barracas para os doentes. Os indígenas, que moravam nas terras adjacentes, vieram ter com os nossos, e lhes offereceram seus serviços contra os Portuguezes, cujo jugo suportavam mal soffridos”.

Os neerlandeses passaram a fazer pequenas entradas para o interior “em procura de refrescos para os doentes” com a recomendação de que não se “offendesse os indigenas, nossos amigos”. No início de julho, expedições holandesas começaram a subir o rio Mamanguape e também a incursionar no sentido do Rio Grande. Os portugueses, alertados da presença dos batavos na Baía da Traição, reuniram forças de Pernambuco, da Paraíba e do Rio Grande para
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Ilustração do libro de Joannes de Laet. ▪ Ed. Bonaventure & Abraham Elzevir, Leiden, 1644 ▪ Fonte: Biblioteca Nacional.
enfrentá-los. Em uma dessas entradas, os holandeses “haviam encontrado junto do rio Mamanguape trez bandeiras de Portuguezes”. Do confronto, segundo Laet, “tiveram os nossos trez mortos e alguns feridos, mas levaram á melhor e puzeram os Portuguezes em fugida. Os indígenas tomaram uma das bandeiras deles, a qual fizeram immediatamente em pedaços”.

A parada da armada na Baía da Traição fora um fato circunstancial e com a recuperação dos doentes e considerando que o general Hendrickzs não recebera autorização da Companhia das Índias Ocidentais para ações permanentes na região, o comando da esquadra se reuniu e decidiu pela partida da expedição. Para Joannes de Laet, a decisão levou o general Hendrickzs a se preocupar com a situação dos Potiguara que tinham ajudado os holandeses nos embates com os portugueses:

“Por outro lado, abandonar os indígenas, que se deram muita pressa em se lançar com elle, e por fazerem conta que as nossas (naus) aqui permaneceriam, já haviam praticado tantas hostilidades contra os portuguezes, era duro e estranhavel. Todavia foi esse voto que venceu”.

No relato de Laet, a decisão da partida da armada causou grande apreensão entre os Potiguara:

“Os indigenas, sabendo que os nossos estavam deliberados a partir, ficaram tambem mui perplexos, pois previam qual a sorte que os aguardava, por ser certíssimo que os portuguezes os haviam de castigar e tomar emendas delles.”
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Ilustração do libro de Joannes de Laet ▪ Ed. Bonaventure & Abraham Elzevir, Leiden, 1644 ▪ Fonte: Biblioteca Nacional.
Muitos Potiguara tentaram embarcar nas embarcações holandesas mas, devido à escassez de mantimentos, somente um pequeno grupo pôde ser levado para a Holanda. Para o historiador pernambucano Bruno Miranda esse grupo seria de 13 indígenas. Dos Potiguara que conseguiram embarcar na Baía da Traição, segundo Pedro Souto Maior, ficaram para a História os nomes de Marzial, Takou, Ararova, Mataúne e aqueles que se tornaram famosos, Pedro Poti e Antonio Paraupaba. Na sua obra, Joannes de Laet registrou o episódio da partida das embarcações no qual muitos Potiguara imploravam para que os holandeses os levassem:

“muitos trabalharam com os nossos que os levassem, mas, como não havia para isto bastantes provisões, somente poucos foram acceitos, e força foi que a mór parte deles se lançasse a monte.”

No relato de Joannes de Laet, “reembarcada a nossa gente, sahiram todos os navios na entrada do mez de agosto”. O general Hendricksz, no comando de parte da armada, navegou para o Caribe, 12 naus foram para a África e as demais seguiram “de rota batida” para a Holanda. Nas palavras de Laet, a armada partiu das “funestas costas do Brazil, onde deixava enterrados perto de setecentos dos seus”, a maior parte deles em razão de doenças e os outros em decorrência dos combates com os portugueses.

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A Baía da Traição localiza-se no litoral norte do estado da Paraíba. ▪ Fonte: Wikimedia /adapt.)
Com a partida dos holandeses, ocorreu o que os Potiguara temiam. Os portugueses organizaram uma grande expedição de perseguição aos indígenas o que resultou no que pode ser considerado um dos maiores massacres sofridos pelo povo Potiguara. Alguns indígenas conseguiram fugir para os sertões do Rio Grande e do Ceará, mas muitos foram aprisionados e escravizados. Dez anos depois do episódio da Baía da Traição, quando da conquista da Paraíba pelos holandeses, ainda existiam Potiguara escravizados pelos portugueses, desde aquela época, conforme anotado em relatório escrito por Servaes Carpentier que foi o primeiro governante batavo na Capitania da Paraíba:

“os que, aprisionados na baía da Traição por se terem aliado ao general Boudewijn Hendricksz, foram escravizados, mas os nossos os declararam livres por público pregão”

O episódio do massacre praticado pelos portugueses na Baía da Traição acabou aproximando dos flamengos uma parcela da nação Potiguara e alguns daqueles indígenas que conseguiram, em 1625, partir da Paraíba para a Holanda tiveram papel importante na aliança
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que os Potiguara firmaram com os batavos durante o período do chamado Brasil holandês, como foram os casos de Pedro Poti e Antonio Paraupaba.

Segundo o historiador Pedro Souto Maior, Pedro Poti ficou cerca de cinco anos na Holanda, período no qual aprendeu a língua neerlandesa com tal fluência que, em 1631, já conseguia escrever “em bom holandez” uma carta para o governo batavo no Recife. Para Souto Maior, Poti e Paraupaba se tornaram “dous crentes fervorosos e inabalaveis” da religião protestante e, na volta para o Brasil, “Poti foi eleito governador dos índios da Parahiba e Antonio Paraupaba, dos do Rio Grande”. Em uma carta enviada a seu parente Felipe Camarão, que se alinhara com os portugueses, Pedro Poti explicava que um dos motivos da sua escolha em ficar do lado dos holandeses fora o massacre e as perseguições que os portugueses fizeram aos Potiguara, em 1625, na Baía da Traição:

“em todo paiz se encontram os nossos escravizados pelos perversos Portuguezes, e muitos ainda o estariam, se eu os não houvesse libertado. Os ultrajes que nos têm feito, mais do que aos negros, e a carnificina dos da nossa raça, executada por elles, na bahia da Traição, ainda estão bem frescos na nossa memória”

A passagem do quarto centenário da presença dos holandeses na Baía da Traição, ao que parece, não conseguiu despertar nenhum interesse na Paraíba, restando apenas a um mero “contador de história”, na definição que foi dada por Machado de Assis, rememorar, neste texto alinhavado, um episódio tão importante da história paraibana.

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  1. José Mário Espínola8/6/25 05:20

    O nosso historiador Flávio Brito nos oferece mais um domingo ricamente ilustrado com mais uma história fascinante.
    Obrigado, Flávio Brito!

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  2. Começo bem o domingo. Tenho uma máquina do tempo ao meu dispor. Sobrevoo a costa nordestina sem que me alcancem tiros de Portugal nem da Holanda, nesta viagem de 400 anos. A apuração rigorosa dos fatos, o aprumo e a leveza da pena de Flávio põem-me no rumo certo. Trazem-me o conhecimento de ocorrências, causas e motivos. E me fazem torcer pelos índios. Grato, amigo.

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  3. Anônimo8/6/25 08:24

    A fé dividiu os potiguara.

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  4. Aulas de História real, sem invencionices, com saberes bebidos nas fontes de estudos sérios e narrativas moldadas com estilo. Parabéns, Flávio!

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