São vários os critérios para se considerar elevada uma literatura. O principal deles se liga ao próprio conceito de literatura, que é a “a arte da palavra”. Arte é técnica, domínio do material para a obtenção de um resultado. Por essa ótica, a boa ou alta literatura é aquela em que se usa bem a palavra para conseguir o efeito estético. É basicamente pelo manejo criativo da língua que se produz uma literatura de qualidade.
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Literatura é forma, basicamente. É a prevalência do significante sobre o significado, no sentido de que o “como se diz” conta tanto ou mais do que “o que se diz”. A forma é que caracteriza o estilo de cada um. Um discurso político ou religioso pode ter um alto grau de literariedade (como ocorre nos escritos do Padre Antônio Vieira ou de Rui Barbosa) em razão dos desvios ou acréscimos que neles ocorram em relação ao uso normativo ou denotativo da língua. Esse uso corresponde ao que Rolan Barthes chama de “grau zero do estilo”; ele corporifica o escrever certo, mas não necessariamente o escrever bem. O grau zero do estilo “representa a linguagem em seu estado puro, (...) destituída de qualquer marca individual ou histórica. É uma linguagem que busca a transparência, a neutralidade, a objetividade. É a linguagem da notícia, do documento administrativo, da linguagem científica”.
Rui Barbosa / Padre Antônio Vieira CC0
Pondere-se, contudo, que mesmo em tal uso pode residir a “beleza lógica”, de que fala Humberto Eco. Ou seja, pode em alguma medida residir literatura. Do mesmo modo, a prevalência do estilístico não é por si determinante da qualidade literária, já que um texto não se sustenta sem o ordenamento propiciado pela disciplina gramatical. Como diz Francine Prose, em “Para ler como um escritor”, “dominar a lógica da gramática contribui para a lógica do pensamento”, e pensar bem é a primeira condição para bem escrever.
René Wellek e Austin Warren, entre outros grandes teóricos, preferem caracterizar o literário pela presença do elemento ficcional. Para eles, o que identifica a literatura é a produção imaginativa, ou seja, a criação de um “outro mundo”, que espelha o nosso. À ficção pertencem espécies narrativas e representativas como o romance o conto, a novela, o teatro, e mesmo as produções poéticas, pois o chamado eu lírico não deixa de ser um personagem e, como tal, não se confunde com o autor.
No âmbito ficcional, o conceito de bom (ou ruim) deve atender a outros requisitos que não os estritamente linguísticos. O que é uma boa ficção, em que ela se distingue da má? É a que leva em conta o referencial constituído pela tradição (sobretudo os clássicos), bem como as modernas produções que se podem erigir em modelos para os diversos gêneros. A boa literatura é aquela que não se alheia dessas duas matrizes, no sentido de que em alguma medida deve refletir a lição dos mestres antigos e a prática dos modernos exímios na arte de escrever. Diante disso, uma condição fundamental para produzi-la é ler os que melhor a realizaram.
Mas como definir esse melhor? O que enfim, no âmbito da ficção, pode caracterizar uma literatura como elevada? Não há uma resposta única a essa pergunta, no entanto é consenso entre os teóricos e críticos que se verifica na alta literatura a capacidade de traduzir os enigmas da alma humana e os apelos que a requisitam para o Bem ou para o Mal. Ela espelha a complexidade do nosso ser e se torna, diante disso, capaz de promover no leitor a catarse, levando-o pela identificação ao reconhecimento de que os dilemas e angústias das personagens são, em larga medida, os seus.
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Nossas relações com os outros são limitadas pelas máscaras decorrentes dos papéis sociais, e isso impede que venhamos a verdadeiramente nos conhecer. Tal obstáculo tende a se desfazer na interação estabelecida com os personagens da boa ficção. Como espelhos que são de nós, eles fazem com que apreendamos melhor a nossa essência e concorrem para o desenvolvimento da nossa humanidade. Não foi à toa que Harold Bloom subintitulou o seu estudo sobre Shakespeare de “a invenção do humano”. A alta literatura é a que diz quem verdadeiramente somos.
(A pergunta que intitula esse texto foi endereçada pelo gramático Fernando Pestana aos colaboradores do portal “Língua e Tradição”, por ele criado.)