É esse o título do mais novo livro da escritora tão jovem e tão consagrada, Aline Bei. Já havia me encantado com os seus dois romances anteriores: O peso do pássaro morto e Pequena coreografia do adeus. A capa já tem uma aquarela de duas flores vermelhas e um título que dança. Dança? Mas esse não era o título do segundo livro? Sim. Tudo se interliga de uma certa maneira. Essa coleção. Essa delicadeza. Essas ausências.
Aline Bei SESC (PR)
Um bordado de ponto de cruz. Ou aqueles bordados que nem avesso têm. Seria uma definição para a escrita de Aline? Sempre faz uma escolha por uma grafia mais que especial. A grafia que dança com o texto. Com as palavras. As exclamações. Os itálicos. As palavras soltas no ar. Ou no papel. Texto em colunas. Sem pontuação. Palavras soltas nas páginas. Mas nem tão soltas assim. Termina alguns capítulos com simplesmente uma vírgula — ou não seria tão simplesmente uma vírgula? Uma aspa? Assim... grafia que flerta com a poesia concreta, palavra, signos, poesia visual. A história se inicia abruptamente, em letras minúsculas, e termina com o título “aos que existem sozinhos”, fechando a sua definição de ter crescido depois da chuva...
O romance tem um prólogo e, logo em seguida, o enredo com o título do livro, seguido de capítulos: A Névoa, Os animais que não deram certo, O Impulso. Fiquei a me intrigar com a névoa primeira, quando temos a história de Margarida, o circo, o palhaço, a sua fuga e, quem sabe, uma memória inventada: “É preciso primeiro esquecer, para então verdadeiramente lembrar.” A sua neta, Laura. A filha ausente, Glória, e depois a bisavó de Laura, Filipa. Algo não dito? Fugidio? Um segredo?
GD'Art
Quanto aos Animais que não deram certo... vai saber? O nome de uma reportagem. Roupas no varal. Uma camisola que se move ao vento. Glória, uma filha que sumiu no mundo! Um perigo! “Confiando só na boniteza do corpo que um dia acaba.” A neta, Laura: que tem pernas compridas, do tamanho exato da ausência da bisa Filipa, cujos olhos são de desassossego e “palmas das mãos grandes; se frequentassem teatros, elas seriam o aplauso de dez em um.” A árvore genealógica que o professor pede para desenhar na lousa “era só feita de fantasmas: fantasma da mãe, fantasma do pai, fantasma palhaço-vô...”
Laura, a neta: “ainda não sabe que se tornará cada vez mais um corpo que atravessa a porta em direção a seu próprio desaparecimento”. A vida das meninas: Laura e suas amigas, Lívia e Jordana. Uma gaita, um varal, calcinhas penduradas, os rastros, os odores outros, os líquidos amarelados, a primeira menstruação, o sangue, os beijos escondidos, o corpo, os toques no banheiro da escola, o beco do rato? Os meninos. Uma calcinha com aquela “sobreposição costurada sempre com alguma selvageria. Ali o tecido não é branco,... ali se vê uma mancha, sim, que é da cor de um leite fervido, e com cheiro de algo que o sabão não consegue apagar.”
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Camilo, amigo de Margarida, tem um antiquário. Uma barraca na feira de antiguidades. Quem dá carona. Quem chega sem aviso. Quem deixa um dinheirinho embaixo do liquidificador. Quem empresta um guarda-chuva. Quem tem uma Kombi que cheira a cigarro, perfume e suor. Seria uma pista? Um rastro? Um aviso? Mas Margarida se pega olhando para Camilo em algum momento e pensa: “Mas nunca se deve olhar um rosto depois que a conversa acaba, senão é provável que o veja nu.”
Aline Bei escreve como quem borda. Tece. Faz rococó. Usa utensílios como filigranas do cotidiano dessas mulheres. Um circo pelo meio. A magia. Uma casa. Uma janela. Uma cozinha. A escassez. E uma ajudante de mágico que, na magia, desaparece; quem sabe, numa referência às ausências da sua vida. Margarida sabe ler as linhas das mãos. Sabe do traçado. E dos trançados. E das tranças das mulheres. Mas as de longe. Não consegue ver as de perto. A sua filha Glória, a sua neta Laura, a sua mãe Filipa que já não pode morar na casinha do quintal da igreja. A escrita de Aline se movimenta pelo corredor, com esses artefatos da grafia para decifrar o enigma da história.
Aline Bei
Uma coleção de ausências entrecortada por fios bordados, mas em que pressentimos uma violência. Uma violência contra as mulheres. As mulheres sozinhas e os seus segredos. Seja na infância, na juventude, na vida adulta ou na velhice. Todas sofremos violências tantas. Entranhadas nas paredes. Nos silêncios ancestrais e que se instalam no dia a dia. Na vizinhança. Na escola. Até mesmo na memória escolhida. Uma caixinha de música, uma agulha de crochê, vestidos escuros, Santo Expedito, canções de Violeta Parra, uma viúva sem luto, uma mágoa e o silêncio — essa língua materna! E o percurso de uma lágrima, como se fabricasse nos olhos balas de sal. As meninas. As amigas do colégio. Os caderninhos de confidências, o ser bonita, a avaliação dos meninos. E ter um corpo “não confiável”. Volver a los diecisiete!
Filipa, Margarida e Laura — “as três formam uma única imagem, que de tão brilhante parece um brinco que caiu da orelha de Glória mais à frente, e agora estavam ali. De tão pequenas, jamais seriam encontradas.”
Uma janela do banheiro. Fugir. Os olhos que dizem SIM!
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